A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Uma mulher sexual

Da série Nanda e Raul

Nanda cansou de ser uma mulher “não sexual”. Que Raul assim a considere ela até entende porque, no final das contas, o cara é que é muito tarado, só pensa em sexo, pega no meu pau daqui, pega no meu pau dalí, vem cá minha gostosona, senta no colo do papai, e vai por aí a fora. Não, Raul decididamente não conta. O que mais a incomoda é sua autoimagem: de fato, ELA se considera pouco sensual. Mas, agora, estava decidida a mudar essa história.

A oportunidade surgiu com a festa de despedida de solteira de sua sobrinha Cíntia: um bando de mulheres ajudando a amiga a despedir-se dos tempos de descompromisso, baladas e ficadas. Uma festa de arromba, só de mulheres, com total liberdade para dizer qualquer besteira e fantasiar toda sacanagem. De modo que Nanda ficou muito atenta para aprender com a experiência, de como outras mulheres são “sexuais”. Mas a sensação da noite, o grand spectacle, ficou mesmo por conta de Terezinha Pé de Serra, uma portuguesa, sexperformer, amiga de Cíntia, contratada para ensinar as mulheres sobre como deixar qualquer homem de quatro, o que, convenhamos, não é tão difícil assim. Mas, vá lá, esse era o desafio que ela propunha às participantes do bota fora da vida de solteira para botar dentro da vida de casada. E para isso, a jovem nubente deveria estar preparada para lidar com um “gajo” – como dizia a especialista lusitana – que se tornaria uma presença permanente em sua vida. Nanda pensou agora vou aprender os macetes da boa sacanagem e que Raul se cuide, ora pois, parafraseando a expressão característica da professora lusitana.

Na aula introdutória, Terezinha foi logo explicando: – Ora pois, mulher fêmea não se despe para o homem, espera que o gajo lhe tire as roupas, a desnude, se o marmanjo a quiser comer! Quem não tem competência não se estabelece, ora pois!

Bom, Raul não tinha esse problema, vivia tirando a roupa de Nanda, normalmente ele já peladão. Mas tudo bem, valeu o recado, ela tinha que se insinuar para que o “gajo” tivesse anseio de lhe tirar “o fato”. Como se insinuar?

Terezinha, com a experiência conferida pela vida, disse que não há homem que resista a uma bunda gostosa de mulher: – Se o gajo estiver zangado por qualquer razão, basta dar um jeito de mostrar-lhe o cú (lembremos que nossa professora chama de cú o que chamamos de bunda) que ele logo volta às boas falas, ora pois. Deixe cair algo à sua frente e curve-se despreocupadamente para pegá-lo de modo que o vestido erga-se o suficiente para mostar as coxas, quem sabe, generosamente, até a parte inferior do cu. O gajo deverá pensar que belo cu o desta rapariga. E daí, se competente for, tratará de dar prosseguimento ao assédio, ora pois!

Bom, aqui também não é muito problemático porque Raul não perde a oportunidade de meter a mão no meu “cu”, pensou Nanda. Mas, para atender a expectativa da mestre, talvez ela pudesse deixar cair as coisas mais frequentemente, anotou em seu caderno de apontamentos.

– Ah! Convém, nessa manobra ousada de curvar-se à frente, estar de cuecas (calcinhas, em boa tradução), porque o gajo deve permanecer com certa dúvida a respeito das intenções da companheira; a nudez completa, visualizada sob o fato facilitará as coisas para ele que, assegurando-se do desejo da mulher, poderá, precipitadamente, cair de boca, como se diz aqui no Brasil, na xereca da rapariga! Que não é o que, ainda, desejamos, ora pois. A dúvida criará o estímulo necessário à ousadia de correr o risco de interpretar incorretamente o gesto da mulher (desejaria ela apenas alcançar o objeto caído?). Homem macho, que é macho deveras, ousa arriscar e ser rejeitado, ora pois! Se não, que vá assistir o flaflu em vez de comer a mulher.

Atenta ao estilo direto e cortante da professora, Nanda elocubrou, Raul é um cara de pau, até quando eu o rejeito ele dá em cima, pega aqui, pega ali, Nandinha, vem cá minha gatinha, minha potranca, minha galinhona, filhotinha, putona, minha vadia, dependendo do grau de luxúria do pervertido! Mas, tudo bem, entendi, tenho que ser discreta, deixar o cara na dúvida, mas não desancar de vez, se não, até o Raul desiste.

E assim foi, noite adentro. A noiva bebeu todas, a ponto de sentir-se mal e perder as últimas sexy-lessons. Nanda, ao contrário, manteve-se sóbria, aproveitando as dicas de Terezinha sobre como ser mais sexual. Chegaria a hora de testar seus conhecimentos, transformarmando-os em novas competências na arte do amor. Sexta-feira, Raul vai ver!

Sexta-feira, após o jantarzinho especialmente feito por Nanda, e logo após o Jornal Nacional que Raul assiste com regularidade e fervor político-religioso. Nanda, vestindo uma camisolinha que lhe bate um palmo acima do joelho, faz de conta que vai pegar o controle da TV e o derruba propositalmente à frente de Raul.. Deixa entrever a beirada de uma tanguinha transparente, aquela que Raul lhe dera para comemorar a passagem para o ano novo. Demora-se um pouco mais do que seria o necessário para alçar o controle. Ergue-se e passa o controle para Raul que exclama: – Nannda! Que rabo!!

Nanda esperava um comentário mais discreto, mas lembrando-se de quem era o “gajo”, apenas enrubesceu: Ééé, gostou?

– Nannda! Você tem um rabo maravilhoso! Assim, você acaba comigo! Exagerado, sempre exagerado, pensou Nanda, quer ver, daqui a pouco vai pedir para eu pegar no pau dele. Ah, Raul, você não tem jeito mesmo!

E, para tirar um pouco da concentração de Raul, resolveu contar sua experiência na festa de despedida de solteira da sobrinha. Falou da figura hilária de Terezinha Pé de Serra, lembrando que ela é assim chamada porque durante algum tempo trabalhou numa boate no Rio de Janeiro, na subida da serra de Teresópolis, daí o “pé de serra” que acompanha seu nome, dado pelos frequentadores, tudo isso antes de passar a se dedicar ao trabalho de consultoria de performance sexual para jovens nubentes e senhoras que, tal como Nanda, estavam em processo de revisão de sua postura diante da sexualidade conjugal.

Falou de como, segundo a consultora, os homens gostam do “cu” das mulheres –bunda, Raul, ela é portuguesa, lembre-se –, de como eles ficam enlouquecidos ao vê-las desplicentemente mostrando as nádegas e de como precisam ficar na dúvida sobre as intenções das mulheres em relação ao sexo; isso os excita a ponto de os enlouquecer.

Raul estava totalmente atento à narrativa: – Nannnda! Já estou enlouquecido – ostentando uma nada discreta ereção. Nanda começa, então, a perceber que seus comentários estavam deixando Raul excitado e ela mesma começando a se sentir muito poderosa, muito sexual. E, num ímpeto de independência em relação à autoridade da mestre, resolveu improvisar.

– E vou lhe contar mais uma coisa, que eu não queria dizer, mas que você acabaria por descobrir.

Raul, momentaneamente, estremeceu diante da possibilidade de uma confidência picante. Continuou Nanda: – Como vamos viajar na semana que vem, resolvi fazer uma depilação “biquini”, sabe né, pra poder usar o biquini cavadinho que você me deu no Natal. Daí, a depiladora cobriu meus olhos com a venda de repouso para que eu relaxasse enquanto ela fazia o serviço. Ela comentou como eu estava cabeluda ali embaixo, enfim, do jeito que você sempre gostou, e se ela poderia aparar a “cabelereira”. Eu disse que sim, afinal vou usar o biquinho que você me deu, e continuei descansando. Depois de uns 20 minutos, ela me perguntou o que eu achava do trabalho. Rauul! Você pode não acreditar, mas ela simplesmente “zerou” a minha xereca, pelada, peladinha, o que Raul vai dizer, ele gostava tanto da cabelereira a la Vera Fischer, que fez a maior propaganda das xerecas cabeludas, o que vou dizer ao Raul? E ela ainda perguntou se eu não queria que ela depilasse atrás também! Claro, disse que não, porque não sou tão cabeluda assim, ali...

Nanda, desarvorada, falando apressadamente a perder o fôlego, contava os detalhes da peripécia com a depiladora, a ponto de não perceber a entumescência crescente de Raul que apenas conseguia balbuciar: Nannnda! Que loucura! Deixe-me ver isso de perto! – levantando a camisola da esposa e arrancando a calcinha de reveillón, num só gesto definitivo. E, tal como advertira Terezinha Pé de Serra, para os casos de manobras eróticas precipitadas, Raul caiu de boca no artigo, ora pois...

Roque Tadeu Gui

sábado, 29 de janeiro de 2011

Um romance para Cristina

Era ainda muito menina quando Cristina conheceu sua primeira paixão, nos tempos em que se inicia a despedida da inocência. Aconteceu numa rápida invasão ao quarto ocupado pela irmã moça, para a caçula uma espécie de ideal de gente grande que usa batom e vestido com peitos salientes e sempre que passava as férias na casa da família enchia os olhos de Cristininha de puro encanto e admiração, nos quais facilmente se podia ler: quando-crescer-quero-ser-igualzinha-a-você. Pois não se trata da paixão pela irmã universitária: esse apego nem se sabe quando começou, sempre existiu e num futuro ainda distante se transformaria numa amizade fecunda e cúmplice entre duas irmãs adultas.

À espreita dos pertences da irmã, o que lhe garantia a diversão das férias invariavelmente gastas no sítio da família, Cristininha esbarrou numa pilha de livros de gente grande. Menininha prodígio, menos mimada do que interessada no mundo dos maiores, lia desde os 5 anos, não demoraria muito completaria 10, já estava cansada das histórias pueris contadas nos livros da biblioteca da escola. Ali sim, no pequeno acervo da irmã de costumes de cidade grande, dona do próprio nariz e longe do domínio dos pais, ali deveria encontrar histórias de adultos, suas tramas, segredos, paixões, amores carnais, as tentações e perigos de um mundo obscuro (só as crianças dormem à noite), seduzindo com luzes coloridas, música e drogas no interior das boates e casas noturnas ou se escondendo entre quatro paredes, num quarto de motel.

O mundo de sua curiosidade não mais inocente estava todo ali! Na leitura de férias da irmã, os diários de Anaïs Nin, uma edição gasta de Delta de Vênus e um exemplar de sebo de A Casa do Incesto. Acompanhando a literatura erótica da autora francesa, o romance escrito por seu amante Henry Miller, Trópico de Câncer, publicado pela primeira vez em 1934 e proibido nos Estados Unidos até 1961. Verdadeiro deleite para Cristininha aquelas férias. Todas as tardes, apressava-se em cumprir sua cota nos afazeres domésticos, ordem expressa da mãe, enveredava pelo quarto da irmã, sequestrava-lhe uma de suas preciosidades literárias e se trancava em seu iluminado quarto, percorrendo com a sede da volúpia púbere dezenas de páginas diárias, até que a noite adentrasse o quarto com um vento fresco e a tênue claridade da lua, insuficiente para saciar o anseio pelo próximo capítulo. A inexistência de luz elétrica no sítio devia-se a um capricho ancestral do pai, auto-intitulado amigo da natureza, um desses insuportáveis xiitas ecológicos. Depois do jantar, a sobremesa era degustada pela menina no próprio quarto à luz de uma robusta lamparina. No prato, mais uma leitura secreta, os poemas de Bocage.

Aquele verão no sítio transformou Cristininha numa contumaz devoradora de livros. No verão seguinte, sempre provida da pilha de livros da irmã, renovada a cada novo retiro no sítio, Cristininha penetrou no Complexo de Portnoy, com o qual Philip Roth escandalizou meio mundo e foi consagrado pela outra metade no final dos anos 60, revelando de um jeito engraçadíssimo o fantástico e sombrio mundo de Alexander Portnoy, seus problemas sexuais, suas impropriedades masturbatórias e sua tirana mãe judaica. A menina cujos olhos brilhavam ao ver qualquer conjunto de letras impressas em folhas de papel ordenadas e encadernadas sob uma capa e título sugestivos também visitou a obra de Saramago. Estavam lá, na coleção de férias da irmã, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. Isto pra começar. Nas férias de julho percorreu novos volumes de Saramago, os romances de Edgar Allan Poe, outros policiais mais despretensiosos. No verão seguinte, a obra completa de Nélson Rodrigues, começando por Os Sete Gatinhos, e os contos eróticos de Boccaccio, o amigo de Petrarca.

Pouco provável que nossa obstinada leitora mirim se revelasse uma pervertida garota a se excitar com os produtos mentais, certamente pornográficos, de sua leitura nada convencional. O erotismo brotado das páginas vorazmente consumidas por Cristina só aguçou seu gosto pelos livros, apurado pelos mais variados estilos e autores da literatura clássica e contemporânea. As obras selecionadas nas férias seguintes foram Dom Quixote, Morte em Veneza e O Estrangeiro, de Alberto Camus, também folheou Dostoiévski e encarou a interminável leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Cristininha contentou-se com a primeira e maior paixão. Tornou-se uma escritora de sucesso, com imaginação inesgotável para as tramas e desfechos contados em contos e romances, talvez as histórias não vividas no mundo da não-ficção. Instalou-se no velho sítio da família e busca sua matéria-prima em garimpos na internet, visitando sítios de relacionamentos e redes sociais virtuais. Sempre às tardes, depois de cumprir as tarefas domésticas e alimentar seus sete gatinhos, adentra o antigo quarto da irmã, senta-se frente ao seu notebook e começa a espiar os segredos e intimidades alheias, descuidosamente largados na internet. Ainda hoje sente na saliva um leve gosto do proibido.

Cláudia Carneiro

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Instinto (Cenas de um romance familiar)

O pai era homem de princípios.

E um desses princípios comandava que dinheiro não faz bem em mãos de criança. Se os filhos desejam alguma coisa, que peçam, se eu puder atender, ótimo, se não puder atender, conformem-se, será mais uma prova neste mundo de expiações e provas.

Assim pensava, assim agia o pai. Acontece que ele levava tais ideias ao extremo, digamos às últimas consequências, excedia-se num fundamentalismo que o distanciava das mais evidentes circunstâncias, incluindo aquelas mais primitivas e portanto básicas, como a fome e a sede.

Mas os filhos crescem. Até certa idade Pedro e Paulo jamais sentiram falta de dinheiro no bolso. Se desejavam um guaraná, Pai, dá um guaraná?, se desejavam uma empadinha, Pai, dá uma empadinha?, pedidos simples e esparsos, não havia shopping centers naquela época, a oferta de comes e bebes resumia-se a ida ao futebol nas tardes de domingo, quando cruzavam com uma carrocinha de pipoca ou algodão doce, e tais singelos pedidos simples e esparsos eram atendidos prontamente pelo pai provedor.

Mas os filhos cresceram e, aos poucos, deixaram de pedir. Pedir tornou-se embaraçoso, incômodo, desconfortável mesmo, manifestação de fraqueza, algo indigno (embora esta palavra não pudesse ser proferida naquela época por ainda desconhecida, o sentimento já estava presente), verdadeira humilhação, Paulo, tem graça agora a gente implorar por um sorvete!, É, Pedro, o que custava ele pagar uma coca-cola?, Ele é pão-duro, Paulo!, Uma sacanagem isso, né, Pedro..., E ainda faz cara feia, Paulo! Preferível, pois, a privação, a falta, a fome e a sede. Estoicos meninos.

Havia, porém, uma determinada situação em que predominava o instinto, as vísceras falavam mais alto, e o tal estoicismo ia para o brejo, a humilhação era esquecida, a fraqueza convertia-se em coragem, à merda com a dignidade: quando o nariz era inundado pelo perfume mais embriagador, na boca um jorro contínuo de saliva, o estômago a contorcer-se e secretar, as tripas roncavam tão alto que era possível ouvi-las do outro lado da rua, a vista turva (pela fumaça ou pelo desejo?), o coração disparado na tentativa de dar conta de tantas e tamanhas emoções.

Em se tratando de dois meninos às portas da adolescência, nada mais razoável que pensar que estamos descrevendo o encontro iminente com a primeira namorada. Paulo ainda não, mas Pedro andava de fato de olho virado para um rabo de saia, a moça vizinha de nome Heloisa e sobrenome ilustre, a família de posses, linda lourinha de farmácia que costumava tomar banho de sol nos fundos do quintal com as pernas de fora, uma loucura, Como levá-la ao cinema se não tenho trocado nem mesmo pra pipoca?, ruminava o desalentado Pedro; estas - e outras ideias! - passavam-lhe pela cabeça, e o pai inflexível, Dinheiro em mão de criança não produz coisa boa!

Que nada! Heloisa não tinha nada a ver com isso! O terremoto, a convulsão, a reviravolta das vísceras, a força bruta do instinto ainda não se devia à força das glândulas: tudo aquilo acontecia era quando os meninos passavam diante de uma carrocinha de churrasquinho de gato, a exalar aquele cheirinho delicioso e irresistível do interdito churrasquinho!

Até hoje, Pedro e Paulo, adultos, os filhos criados, com netos, se cruzam nas ruas com o tal perfume e a tal fumaça, pode-se ouvir do outro lado da rua o frear brusco do carro, param, descem, Moço, dá aí um churrasquinho!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O "alemão" do Juninho

Aos quatro anos, Juninho era dessas crianças cheias de energia, dessas que conseguem se divertir muito transformando sucatas em preciosos brinquedos. A família morava numa casa modesta no interior de uma cidade do Norte do País. O pai, habilidoso marceneiro, popular na cidade, tido como um sujeito pacato e honesto. A mãe, dedicada costureira, muito trabalhadora, conhecida nas redondezas como Dona Zinha. Juninho cresceu ao lado de muitas crianças. Apesar de filho único, sempre foi cercado de companheiros para brincar. Na região onde moravam tudo era muito simples, os recursos muito escassos; porém, havia ali alegria, gente falando com gente, sorrisos, abraços, muita solidariedade. Os vizinhos se visitavam, havia bailes nos fins-de-semana, bolos de aniversário, no centro da praça principal, para a comemoração dos aniversários mensais. Havia sossego. O contato com o mundo vinha de algumas televisões e rádios da redondeza. Certo dia, Juninho estava entretido com seus brinquedos e amigos quando viu uma imagem na televisão que despertou seu interesse: eram homens, muitos homens, vestidos de forma estranha, com algumas coisas nas mãos, uns chapéus na cabeça, carros e outras coisas gigantes que passavam por cima de outras coisas, pessoas correndo, fogo, muito barulho e um moço que dizia “guerra” na televisão. Juninho correu para o pai. Muito assustado, olhou para ele e perguntou: “pai, o que é guerra?” O pai, muito desconcertado, afinal não esperava uma pergunta dessas, vinda do menino, pensou um pouco, respirou fundo, e disse: “filho, guerra é quando as pessoas não se entendem; quando há brigas; quando umas pessoas correm atrás das outras com revólveres, espingardas, facas, bazucas; é quando o céu fica preto de tanta poeira e as pessoas sujas de tanto lutar; é quando a conversa já não resolve; é quando as pessoas perdem o juízo, se é que, algum dia, o tiveram; é quando não há paz”. Juninho, muito pensativo, fez a derradeira pergunta: “pai, dá pra comprar uma bazuca da paz?”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Afeto à vista

espero afeto à vista
límpido, direto, caloroso
afeto a crédito
cobra juros extorsivos, impagáveis
desequilibra a balança emocional

espero afeto à vista
receptivo, puro, íntegro
afeto a crédito
corrói o estoque de carinhos
destrói o capital de afagos

espero afeto à vista
generoso, sutil, aberto
afeto a crédito
aprisiona, submete, induz
aniquila o nós, impõe o eu

espero afeto à vista
a esperança, a luz, a vida
afeto a crédito
conforma, consome
e some.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dia dos mortos

A última vez em que esteve em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de sua irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-se particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.

Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria sua solidão, que decidiu ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-lhe paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia seu coração.

A visita improvável causou estranheza ao pai que lá estava. Sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento da querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-o de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.

Felizmente, naquela tarde, ele tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, sentiu que deveria visitar o túmulo da irmã. Depois, foi ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais foi a um velório, acompanhou enterro ou visitou cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu sua avó materna, que morreu de velha e então lhe pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de sua jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos conseguiu se poupar de compromissos funerários.

Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Foi tocado pela tragédia – afinal, tem um filho da mesma idade – e sentiu-se convocado a ir ao funeral. Achou mesmo que já havia se poupado demasiadamente, e isto lhe pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratou de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabou ficando doente, teve febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e ficou de cama. Sentiu-se justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando seus sentimentos, concluiu que escapara da situação. Encheu-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.

No entanto, a ineludível continuará rondando, sabe que não conseguirá despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela o encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que ele ama, alguna daqueles que ele mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela o estará convocando para o encontro fatídico face a face.

Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-lhe que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensou que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.

Foi só. Finados, foi isso. Comeu uma picanha no almoço e bebeu um cabernet sauvignon, brincou com o cachorro e rosnou para sua mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-lhe pela cabeça que no próximo dia de finados irá ao cemitério, honrará seus mortos, renovará suas lágrimas, ainda que isto lhe custe o pressentimento do seu próprio fim. E, quem sabe, conseguirá brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.

Roque Tadeu Gui

Primeira pessoa

A última vez em que estevi em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de minha irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-me particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.

Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria minha solidão, que decidi ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-me paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia meu coração.

A visita improvável causou estranheza ao meu pai que lá estava. Ele sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, eu nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento de minha querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-me de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.

Felizmente, naquela tarde, eu tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, senti que deveria visitar o túmulo de minha irmã. Depois, fui ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais fui a um velório, acompanhei enterro ou visitei cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu minha avó materna, que morreu de velha e então me pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de minha jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos consegui me poupar de compromissos funerários.

Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Fui tocado pela tragédia – afinal, tenho um filho da mesma idade – e sentiu-me convocado a ir ao funeral. Achei mesmo que já havia me poupado demasiadamente, e isto me pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratei de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabei ficando doente, tive febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e fiquei de cama. Senti-me justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando meus sentimentos, conclui que escapara da situação. Enchi-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.

No entanto, a ineludível continuará rondando, sei que não conseguirei despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela me encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que amo, alguns daqueles que eu mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela estará me convocando para o encontro fatídico face a face.

Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-me que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensei que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.

Foi só. Finados, foi isso. Comi uma picanha no almoço e bebi um cabernet sauvignon, brinquei com o cachorro e rosnei para minhs mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-me pela cabeça que no próximo dia de finados irei ao cemitério, honrarei seus mortos, renovarei minhas lágrimas, ainda que isto me custe o pressentimento do meu próprio fim. E, quem sabe, conseguirei brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.

Roque Tadeu Gui

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sem pedigree

Ele foi chamado de vira-lata e tomou como elogio: passa fome (emocional), apanha (da vida), chora (de saudade), mas não desiste de viver.

Instinto de morte

Ele teve um sonho: era uma sequóia gigante num bosque de sequóias. Algumas delas encontravam-se já petrificadas. Percebeu então o seu destino mineral.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Encontro marcado

Ela sempre atrasada e ele sempre adiantado. Resolveram acertar os ponteiros e, na hora certa, viveram felizes para o resto da vida.