A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Encontro

Silvia terminava o banho imersa em pensamentos sobre o encontro daquela tarde, mais um entre tantos outros que já haviam ocorrido. Aquele, contudo, seria especial e prometia mudanças radicais no relacionamento com Teo.


Saiu do chuveiro e envolveu-se na toalha branca felpuda. Enxugou-se, acariciando a pele branca e suave que rescendia a aroma floral. Uma janela aberta permitiu que um vento frio atingisse seu corpo ainda quente e úmido. Açoitadas por uma descarga elétrica, as auréolas dos seus seios arrepiaram e os bicos endureceram. Como seria bom tê-los assim quando Teo ousasse descobri-los. Fechou a janela e continuou com os preparativos.


Olhou-se no espelho, notando o recente corte que deixara o cabelo mais curto, destacando ainda mais o negrume dos fios sedosos. Penteou-os apenas com os dedos, conforme fora recomendado pelo cabeleireiro. Ele tinha razão. O rosto ganhou expressão mais jovem e agressiva. Os lábios rosados mereciam um pouco de brilho: tratou de aplicar o batom incolor que acabara de comprar. Pensou em destacar os olhos com rimel, mas, achou exagerado e abandonou a ideia.


Olhou novamente para os seios, agora já refeitos do choque térmico. Gostou do que viu. Cheinhos. Não avantajados – mulheres de peitos grandes sempre lhe pareceram excessivamente maternais , exalavam o aroma da essência de banho misturado com o da mulher desejosa. Era assim que Silvia gostava de sentir-se. Um pouco maliciosa, um pouco puta.


Dirigiu-se à cômoda e abriu a gaveta de lingerie. Vejamos, o que escolher? Decidiu pelo conjunto rosa de sutiã e calcinha, feito de microfibra leve e transparente. Condiz com o tesão que sinto. Vestiu primeiro a peça de cima, acomodando suavemente os seios no côncavo do tecido suave. Segurando-os com a mão em concha, acariciou-os, gerando nova descarga elétrica. Eles responderão assim ao toque de Teo! Sacudiu a cabeça, voltando a si, a consciência roubada pelos devaneios e a excitação do próprio toque. Novamente, notou o cabelo discretamente despenteado. Ficou muito bom mesmo. Ah, Teo, me aguarde.


Vestiu a calcinha, puxando-a suavemente pelas pernas, bamboleando um pouco as coxas para acomodar a peça nos belos quadris. Olhou para os pelos pubianos que criavam um volume acolchoado sobre sua vulva. Alguns homens preferem as peludas, bocetas virgens não debastadas. Gostam de abrir caminho pelo matagal de pelos com suas barbas bem aparadas e ásperas. Um contraste deliciosamente sensual. Teo será um desses?


Olhou o visual no espelho: havia um corpo voluptuoso sutilmente visivel por trás da delicada lingerie. Enquanto Silvia, com a polpa dos dedos, ajeitava a fina barra da calcinha sobre suas coxas, um último retoque, os mamilos voltaram a endurecer. Por um instante, pensou em se tocar, adentrando com os dedos a selva pubiana, à procura de gozo, mas desistiu; atrasava-se para o encontro. Reservaria o privilégio para Teo.


Sobrepôs à toda sensualidade o curto vestido tubinho preto que abotoava nas costas. Teo tentaria desabotoá-lo, envolvendo-a nos braços, ou pediria que ela se virasse de costas para ele?Atarrachou displicentemente os pequenos brincos de pérola nas orelhas, completando-os com um discreto colar. Pronta, vestida para matar, brincou consigo mesma.


Chegou ao prédio de cinco andares, na ampla piazza comercial do centro da cidade. Como de costume, pegou o elevador, clicando o botão do quarto andar. Atravessou o corredor e parou diante do número 405. Sentia-se-molhada-entre-as-pernas. Antes de abrir a porta com a chave que lhe foi dada por Teo, procurou checar uma vez mais sua imagem na lâmina de bronze lustro fixado à entrada: Teodoclus Miranda, Psicanalista.


Uma última ajeitada no vestido, rodou a chave e entrou.


Deu na antessala, olhou para o relógio e constatou que estava adiantada três minutos; sequer sentou-se, olhando hipnotizada para a porta da sala de análise que abriu-se a seguir.


– Bom dia, Silvia.


– Bom dia, Teo – respondeu com o coração a sair pela boca, deitando-se de imediato no divã, na esperança de ali desaparecer. Segundos eternos para se recompor. Olhou para as coxas deixadas à mostra pelo tubinho preto, conforme premeditara em seus secretos devaneios. Sentiu-se pecaminosa. Cruzou as mãos sobre o ventre arfante e conseguiu murmurar:


– Teo, tive um sonho...


Roque Tadeu Gui


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Náufragos

De criança, fiz um pacto com Deus. E parece que Deus não recusa um acordo proposto por uma criança: Ele simplesmente o aceita, sabendo que um dia voltarão a conversar.

Foi assim comigo. Pedi que Ele me desse forças para enfrentar as dificuldades da vida, dificuldades com as quais eu sentia que meus pais não conseguiam lidar; eu haveria de ser capaz de cuidar de mim mesmo e dos que eu viesse a amar. Cultivaria valores nobres que iluminariam toda a minha vida, uma vida que seria de paz e serenidade.

Hoje, dou-me conta de estar perdido. E levei anos para constatar minha perdição.

Naquela época, quando conheci Maria Luiza, eu era um náufrago não sabido, que se agarrava a troncos de árvores que flutuavam nas águas obscuras e turbulentas de um mundo cheio de perigos e temores. Seria injusto acusar Maria Luiza de abandono e indiferença: ela apenas estava lá, disponível para ser salva, justamente por mim, um náufrago! Não é justo acusá-la. Meu naufrágio já vinha desde muito antes, desde quando procurei por Deus.

Maria Luiza, outra náufraga, nutria a estranha ideia de que sua vida se extinguiria com uma doença incurável. Nada do que fizesse poderia alterar o seu destino; portanto, nada fazia muito sentido, nem mesmo o curso universitário que ambos fazíamos. Caberia a mim convencê-la do contrário. Essa missão estava à altura de meu heroísmo e da unção conferida a mim pelo Santo Acordo: ela precisava ser salva e eu ansiava profundamente por salvá-la. Juntos, concluímos a Politécnica, ela amparada por mim, eu cumpridor de meu destino.

Sinto-me sobrecarregado, exaurido. Explorado, é uma palavra melhor! Maria Luiza não move uma palha, nunca se profissionalizou, diz que cumpriu com seu papel de mãe e de dona de casa. De mãe, vá lá, ela o fez, embora houvesse dias em que eu saía para trabalhar e ela com as meninas já adolescentes dormiam até o meio-dia; naquela casa a vida começava após o almoço – se é que aquilo podia ser chamado de almoço! – quando as crianças iam para a escola. E eu trabalhava duro o dia inteiro.

Tentei, inúmeras vezes, incentivá-la a conseguir um emprego, algo que a motivasse. Em vão! Em nossas discussões ela diz que eu somente sei cobrá-la e diminuí-la. Falhei no cumprimento de minha missão. Nenhum dos dois se salvou. Resta o cansaço: meu e dela.

Roque Tadeu Gui


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Irina Palm

Nanda não era do tipo “sexual”. Era assim que ela própria se descrevia, quando o assunto era sexo. Tinha dificuldades na cama com o marido: Raul era do tipo “sexual” e gostava de brincar com Nanda desavergonhadamente. Era típico dele:

– Nandinha (em tom de súplica infantil), pega no meu pau! E aí começava a via crucis de Nanda. Pensava: – Pôrra, que história é essa de “pega no meu pau”? Esse cara pensa o quê? Que sou marceneira: “pega no meu pau, na minha tora, na minha viga, no meu tarugo, na minha vara, no meu cacete” – desfiando o rosário de símiles usados pelo marido para designar o inoportuno caralho.

O linguajar de Raul chocava Nanda. Que amor era esse o do seu marido por aquele pau que valia para ele um dicionário de sinônimos. (Cá entre nós, leitor, o repertório de Nanda não ficava muito a dever ao linguajar erudito de Raul, pelo menos na retórica que ela usava em seus solilóquios: ela conhecia o inimigo por todos os seus nomes).

Mas, pegava. Relutantemente, pegava o pau de Raul. Talvez porque, no fundo, ficasse sensibilizada com o jeito de menino que o marido demonstrava nas coisas do sexo. Pegava como quem cumpre uma promessa à santa de devoção, por fé e por tradição. Mas, depois que pegava, vinha novamente Raul: – Isso, Nandinha, assim, assim... Bate uma uminha para mim... assim, assim...

– Pôrra, esse Raul não tem jeito! A gente dá o dedo e ele quer a mão, literalmente, a mão toda! Punheteiro, filho da puta! Que tanto goza nesse pau? – ruminava Nanda sem, contudo, nada dizer.

Batia uminha do jeito que Raul gostava. E continuava triturando os pensamentos: – Eu não sou nenhuma puxadora de escola de samba e muito menos a rainha da bateria! (Até porque Raul também não era nenhum porta-estandarte, embora estivesse sempre de prontidão, se é que o leitor me entende...). Não sou daquelas que rebolam a bunda e deixam os homens enlouquecidos de pau duro e as mulheres desejando ser como aquela que deixa os caras de pau duro. É – eu sei – tem mulher que adora deixar o homem excitado com seus requebros, trejeitos e malícia. Mas eu não, pôrra! Não-sou-do-tipo!

Decididamente, Nanda não era do tipo sexual. E prosseguia na metáfora: – Vá lá. Se ainda fosse uma vez por ano, como acontece com os desfiles da escola de samba! Mas todos os dias? Haja pau! E haja mão, a minha! – e continuava batendo uminha, distraída com as imagens mudas da Sony instalada no quarto.

Um parênteses, caro leitor: Raul gostava de assistir uns “filminhos de sacanagem” – para apimentar o sexo, como ele gostava de dizer – acompanhando os raros boquetes de Nanda. A delicada questão requer explicação: outra idiossincrasia de Raul era a de gostar de fazer apostas conjugais sobre os pequenos eventos do dia-a-dia que valiam um boquete para quem vencesse. Bobagens de menino. Qualquer coisa: podia ser uma aposta sobre o tempo, os minutos de atraso na entrega do jornal matutino, ou o humor da empregada ao chegar para o trabalho. É verdade que Raul não tinha muita sorte nesse jogo, mas isso não o incomodava; ganhando ou perdendo, ele sempre saía no lucro. O mesmo, porém, não acontecia com Nanda que nunca viu muita graça nessa história, mas que, se tivesse que escolher, dos males o menor: preferia ganhar a partida.

E, então, era assim: quando nada de interessante estava passando na TV, ele diminuia o som do aparelho e esquecia-se no desejo de ter o pau nas mãos de Nanda. Nanda, condenada ao suplício da punheta diária, mão direita ocupada, manuseava o controle remoto com a outra e sintonizava a novela que a distraía do encargo enfadonho. Nessas alturas, já treinara a leitura labial dos personagens e a novela já ganhara fundo musical com os gemidos de Raul: Assim, assim, Nandinha...

E Nanda remoía para si mesma: – Caralho, Raul (dadas as circunstâncias, desculpe-me o leitor, a redundância das expressões fálicas são inevitáveis). Hora dessas vou contratar uma puta para bater punheta para você todos os dias. Pronto! Tercerizo essa epopéia masturbatória! Pelo menos a trabalhadora leva uma grana, porque eu mesma não ganho nada, só canseira! – e nessas horas, lembrava de uma amiga afrancesada que gostava de dizer: – Qu’est-ce que tu pense? Que “chupá pica” non “canse”? Só nós sabemos o quanto custa! – concluía estoicamente a companheira.

Nanda parecia se animar com a solução encontrada, ainda que imaginária: – É isso mesmo, contrato uma “Irina Palm” (lembra-se, leitor, da adorável personagem do filme inglês?), de mãos aveludadas e que o levará às alturas do Grande Gozo, na consumação de uma Eterna Punheta!

Neste ínterim, Raul gozava e, como era de costume, afrouxava o que ainda poderia haver de censura, abrindo o coração: – Nandinha, meu amor, você bate uminha como ninguém mais! Você é a minha deusa das mãos de ouro!

E Nanda, ainda com a mãos molhadas da labuta, não podia deixar de pensar na bunduda do abre-alas da Salgueiro, a escola de samba que sempre ocupara um lugar especial no coração flamenguista de Raul.

Roque Tadeu Gui


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Réquiem para o mundo

A água, oriunda do transbordamento dos oceanos, subiu rapidamente, atingindo o sopé da montanha sagrada. E continuou a subir, ameaçando com fúria o antigo mosteiro. O velho Lama acordou de seu cochilo entrepreces e avistou o horizonte que até a pouco se perdia no ar frio das grandes alturas, a tempo de ver a enormidade do tsunami que ruidosamente avançava sobre o retiro. Os olhos miúdos reconheceram a cena já esperada. Com o semblante sereno – o mesmo que o caracterizara em tantas outras situações no decorrer de sua longa vida – o velho caminhou em direção ao sino de 4000 anos que por inúmeras vezes brandira, a exemplo dos monges antecessores que outrora fizeram ecoar a melodia solitária do metal ferido sobre os lençóis brancos dos vales que se desdobravam montanha abaixo. Reproduzindo o gesto ancestral, tomou do tronco de cedro milenar e arremeteu-o de encontro à grande cúpula de bronze. O som grave vibrou, entoando um requiém em último adeus, e misturou-se com a imensidão da água que engolia o teto do mundo.