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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Inveja

(Da série Infância)

Paulo sofria com a recorrente dor-de-garganta. Além da dor, havia a febre alta, perda do apetite, perda de peso, e o risco de doença do coração, afirmava Dr. Rubinho, pediatra da família, médico conceituadíssimo na cidade, dono de um imenso Buick verde, que servia tanto para reafirmar sua reputação profissional quanto para causar inveja nos meninos e seus pais.

A mãe sofria com aquele prognóstico maldito, porém era o doutor quem vaticinava, aquelas terríveis palavras de mau agouro: risco de doença do coração. Depois de muita confabulação, noites insones, angústia rouca e desespero, ela decidiu: consentia a operação.

(Paulo não foi consultado; as crianças nunca o são, como se delas não fossem seus próprios pobres pequeníssimos inapreciáveis corpinhos.)

Pedro, apenas um ano mais velho, não fazia a menor ideia do que seria operar a garganta, mas a tal doença do coração, isso ele suspeitava ser coisa séria. Ouvira dizer -- ah!, isso de ouvir dizer na cabeça de uma criança! -- que um tio, que nunca havia visto mais gordo, morrera do coração; não compreendeu muito bem, mas o fato é que o homem morreu. Preocupava-se, portanto, com o irmão. Enfim, a família mobilizada.

A mãe sofria por ela e por todos, sofrimento oceânico, medo do fim-do-mundo exacerbado por sentimento de culpa do qual ela não tinha consciência, e a angústia da mãe contagiava e dilatava a angústia dos demais. (Médico também assusta!) Melhor operar logo.

Paulo foi operado e permaneceu dois dias no hospital. Ao chegar em casa, era um menino triste, tristíssimo, para ser mais preciso. A mãe aguentou firme (estava afastado o aviso nefasto da doença do coração), afinal, para ela, os fins sempre justificavam os meios. O pai sucumbiu diante da tristeza do filho: saiu às pressas em busca de um presente --- e como o pai era bom de comprar presentes! -- na tentativa de consolar o filho tristíssimo. Pedro, simplesmente não sabia o que pensar, ou sentir (ainda não ouvira falar desta praga tão popular nos dias de hoje, a que chamam depressão). Enfim, a família desatinada.

Até que o pai chegou com o presente!

Paulo nem quis abrir o embrulho: olhou para o pacote de soslaio, parado, apático, abúlico, impassível, nem pra frente nem pra trás, nem pra cima nem pra baixo, imóvel como uma estátua: não era com ele.

Pedro... quase morreu de susto!

Um robô! Sim, o presente escolhido a dedo pelo pai -- e como o pai era bom de comprar presentes! --, que desta feita nem os custos mediu, era um maravilhoso robô! Naquela época, é verdade, ainda havia um fiozinho que o ligava a uma caixinha contendo duas pilhas grandes (os japoneses ainda não haviam descoberto o controle remoto). Para os meninos acostumados a ganhar presentes apenas três vezes ao ano, no Natal, aniversário e Dia das Crianças, -- Pedro apenas duas, pois seu aniversário era bem próximo do Natal --, aquilo era uma extravagância.

Mas o robô era mesmo deslumbrante! Devia medir pouco mais de 20 centímetros de altura, todo cinza metálico, brilhante, robusto, troncudo, sólido como um bólido, luzes vermelhas nos olhos, luzes brancas no peito, que piscavam piscavam piscavam e o robô andava em seu compassado passo de robô e movia os braços e a pequenina antena girava na cabeça e fazia um ruído sobrenatural de misteriosa engrenagem: praticamente um ser de outro planeta, só faltava falar a língua dos homens, que a silenciosa língua dos robôs ele falava.

Pedro quase morreu de inveja!

Paulo, apático, mal olhou para o brinquedo.

A impressão que tais eventos causaram em Pedro, o irmão que nunca foi operado de amígdalas, perdura até os dias de hoje e ainda é, decorridos mais de cinquenta anos, de confusão e perplexidade.

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