A que viemos?
domingo, 8 de agosto de 2010
Estupidez
Por ciúmes, o cravo brigou com a rosa. Transtornado, despedaçou-a debaixo de uma sacada. Acabou solitário e espremido numa coroa de flores.
Crepúsculo
O amor trafegava em pista de alta velocidade. Escureceu, freou bruscamente, era do seu feitio. Não olhou no retrovisor, não viu o estrago.
Túnel
Sua amada ficara cega. Como ele só podia ver a própria dor, derramou pimenta nos olhos. Puderam compartilhar a escuridão, se enxergaram.
Soneto II
de uma alma a temer o desamor.
Na esquina, a vida mostra a dor
e arrebata os sonhos e sossegos.
Maior sorte arrancar-me os desejos
teria, fosse vida do ator
que cala em lenço o pranto do amor
e se apraz com mil flores e gracejos.
O mar não me faria mais salgada,
o sol não me daria mais rudeza
que privar meu amor da alegria
de ter seu riso, e tão apaixonada,
atormentada em minha natureza,
sei que não mais da vida eu teria.
Partilha
Foram ao lançamento do livro. Ele adquiriu um exemplar para o casal. Ela protestou: e se eles se divorciassem? Comprou outro exemplar.
Roque Tadeu Gui
Confissão
Ela chegou de viagem. Ele brincou: tenho algo para lhe contar, dormi com... a blusa de seu pijama. Ela falou sério: eu também, com Roberto.
Roque Tadeu Gui
Maria Elizabeth Mori
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
A canequinha
Da série Infância
Não há qualquer incidente neste primeiro dia de aula, nem tampouco nos dias subsequentes de todo este primeiro ano letivo, a não ser na prova final, quando a diretora escreve na lousa Dê um abraço em sua professora, e Pedro permanece imóvel, petrificado, embora possa ler perfeitamente o que está escrito, apenas não pode obedecer àquela ordem porque não dá conta de lidar com o que ainda não sabe, seu amor por sua professora.
O ano letivo encerra-se, Pedro ganha o Primeiro Lugar do Estabelecimento, porém não comparece para receber o prêmio porque não sabe o significado da palavra Estabelecimento, mas tira nota 10 em todas as matérias, inclusive em Comportamento. Sim, porque esta é a única exigência da mãe desde o primeiro dia de aula, Não admito menos que 10 em Comportamento, nas outras matérias ela não fazia questão da nota máxima, Fique sabendo que apanha se me chegar com um 9,5 de Comportamento no boletim, ela ameaçadora, o tom grave na voz, Pedro sente que se trata de algo muito importante o tal Comportamento, sem saber muito bem o por quê de tanta estridência. Quando crescer, Pedro haverá de ler Shakespeare e deliciar-se com Muito barulho por nada.
Agora, ele acaba de completar 8 anos de idade e inicia o segundo ano primário. A mãe, ainda mais aflita que o primogênito, troca Pedro de escola em busca da melhor professora de segundo ano, Dona Yolanda é ótima, mas cuidado com ela porque é muito brava, a mãe adverte, Se o aluno não responde uma pergunta ele come o giz que ela lhe esfrega nos dentes, acrescenta a mãe terrorista, E em Comportamento então nem se fala, Pedro, é rigorosíssima, ela ameaçadora, a mãe, o tom grave na voz... Pedro agora já sabe o significado do quesito Comportamento, ou pensa que sabe.
O segundo ano está chegando ao fim, faltam dois meses para os exames finais, depois as férias, Pedro brilha em todas as matérias, só há 10 em seu boletim. Até que Dona Yolanda anuncia, sem qualquer sombra de remorso, Pedro, este mês você vai ficar com 9,5 de Comportamento, pois ontem você esqueceu de trazer a canequinha de beber água.
A princípio Pedro não compreende o que acaba de ouvir. Quando crescer, Pedro haverá de ler Saramago e deliciar-se com Ensaio sobre a cegueira, onde lerá “Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”, e ele haverá de formular a paráfrase Se podes ouvir, escuta, se podes escutar, repara. Por ora, Pedro apenas ouve, mas não pode escutar, tampouco reparar no que acaba de ouvir, porque só pode pensar em uma coisa: vai apanhar.
Em poucos meses Pedro terá 9 anos, praticamente um homem, pensa, mas vai apanhar, pensa, terá obrigatoriamente que apanhar, pensa, a mãe não poderá faltar com a palavra, pensa, ela deverá executar a sentença, pensa, pois o veredicto já foi pronunciado, pensa.
Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex!
Porque conhece este gracejo -- todos os meninos de sua idade gostam de repeti-lo! --, Pedro sabe que lei é lei, mas ele não se sente culpado, pensa que não merece o 9,5 por causa do esquecimento, pensa que talvez a mãe possa levar em conta as circunstâncias, afinal trata-se apenas de uma canequinha, e sente muita raiva de Dona Yolanda, Maldita professora, este é o pior palavrão que Pedro conhece aos 8 anos de idade, naturalmente proibidíssimo pelos pais, mas vai repetindo baixinho até chegar em casa, Maldita professora Maldita professora Maldita professora...
Pedro chega, entrega o boletim para a mãe, tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim.
Dói muito mais na mãe.
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
A menina que não aceitava apelido
Uma garota alta, bochechas redondas e vermelhas, com uma franja loira escorrendo pela testa larga numa cabeça bem formada que lhe conferia um ar de inteligência e decisão, uma menina forte e valente. Chamava-se Linda. Inteligente ela era, decidida também, mas adorava uma encrenca.
O que mais odiava no mundo eram os puxa-sacos, para os quais tinha um faro especial. Na escola, detectava-os facilmente. Izildinha, por exemplo, colega de escola tornou-se sua arquinimiga por ser uma notória baba-ovo.
Foi assim. Um dia, na aula de Geografia, Izildinha, toda faceira, levou um presente para o professor: três biscoitos amanteigados feitos por sua mãe, delicadamente embrulhados em um guardanapo de papel de seda que era enlaçado por uma fita rosa: – Para o senhor, professor – disse dengosamente a menina.
Linda, à náusea, acompanhou todo o ritual deplorável de puxa-saquismo, esperou que o professor se voltasse para o quadro negro e disparou contra a colega: – Puxa-saco! Puxa-saco nojenta!
Era assim, a pequena Linda tinha raiva de puxa-saco a ponto de enjoar; dependendo do exagero da babação, chegava até a vomitar, de preferência em cima da criatura.
Izildinha não deixou por menos: – Puxa-saco é a mãe! Era tudo o que Linda precisava para se atracar com a colega. Quando o professor se virou para saber que xingatório era aquele, deu com duas meninas nariz com nariz, cada uma agarrando as bochechas da outra, grunhindo e rangendo os dentes. Foi difícil desatracá-las. Até hoje, Linda guarda as marcas das unhas da baba-ovo. O fato é que Linda nunca mais olhou para Izildinha. Desprezo completo, indiferença à existência da rival, eram as armas do arsenal bélico de Linda.
Linda tinha dois irmãos, um mais velho, Mauro, e outro mais novo, Tarciso. Era apaixonada por Mauro e ai do menino que mexesse com o irmão amado. Linda partia pra porrada. Tarciso não precisava que a irmã o defendesse; em dificuldades delinquentes chamava sua gangue, formada por três ou quatro amiguinhos da pesada, a turma que dava trabalho constante para o diretor. Era do tipo que fazia e depois resolvia.
Dizem que Linda se apaixonara pelo irmão mais velho quando ainda era bebê. Mauro, com dois anos, olhava para a irmã no colo da mãe e dizia, em seu idioma infantil: – Dindaaa, dindaaa... Linda se apaixonou irremediavelmente.
Quando foram para a escola, Mauro mostrou ser um garoto inteligente e estudioso, mas um tanto contido e inseguro. Precisava de alguém que o defendesse, e lá estava Linda para cobrir de porrada o eventual agressor. Dizia para o desafeto: – Qual é? Vai mexer com meu irmão, vai? Normalmente, o oponente desistia da empreitada porque encarar Linda não era fácil, todos sabiam.
Em casa Linda era chamada de “Dinda”, lembrança do jeito carinhoso de Mauro que a família logo adotou. Na escola e no grupo de amigos, Linda nunca aceitou apelidos. Era Linda Mourisco e pronto! Quem tentasse chamá-la de “Lindinha”, “Lin”, “Lindoza”, “Lindeza”, e outras corruptelas, sabia que levaria porrada, se você menino, e bochechas arranhadas, se fosse menina, pois Linda dava tratamento à altura dos adversários.
Um dia, aos 11 anos, em plena crise de autoimagem pré-adolescente, chegou em casa e baixou decreto: – De hoje em diante, não sou mais “Dinda”. Sou Linda, Linda Mourisco se preferirem. Nunca mais foi chamada de Dinda.
Roque Tadeu Gui
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
O autógrafo
(Da série O Menino das Letras)
Depois do fatídico dia em que o escritor faleceu, o pequeno André vasculhou a biblioteca do pai à procura de livros que o ancestral português escrevera. Encontrou dois, por sinal, com nomes estranhos, como estranho parecia ser o autor: “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Ensaio sobre a cegueira”.
Andrezinho pensou: afinal, o senhor amargo – lembre-se o leitor que o garoto chamava assim o velho escritor, numa espécie de intimidade concedida unilateralmente pelo menino das letras; o velho, seja lá onde estivesse, quem sabe acertando suas diferenças com Deus, de quem ele sempre discordara, não se oporia à ousadia de Andrezinho – então, o escritor era religioso? Seu pai assegurava-lhe que não, o senhor amargo era ateu, ou seja, aquele que não acredita em Deus, segundo pesquisa rápida do menino escritor... bem, vocês sabem onde! Ou, então, era médico de cego, oftalmologista, o pai ajudou, para escrever com conhecimento de causa sobre cegueira!
Mas, o que o atraiu mais do que os títulos dos livros foi um rabisco com o nome do escritor na primeira página do “Ensaio”: uma assinatura! O pai explicou ao menino que se tratava de um autógrafo que tivera a felicidade de obter do autor ao vivo, por ocasião de uma de suas vindas ao Brasil.
Ora, elucubrou Andrezinho, o pai tivera a sorte de conhecer pessoalmente o parente distante. Esta era uma experiência que ele jamais teria, vez que o senhor amargo fora desta para outra melhor, como dizia seu pai. Sentiu uma ponta de nostalgia por algo que nunca viria a ter.
Dia seguinte, Andrezinho foi fazer um dos passeios preferidos com seu pai: ir à Livraria do bairro e fuçar em todas as estantes. Era ali que o menino escritor descobria todos os gêneros de leitura, um excitante mundo de aventura. Nunca saía de mãos vazias: além do desbravamento do abrir e fechar livros, o pai sempre lhe comprava um livro que despertasse o seu interesse. Foi então que o menino, olhos estatelados, notou uma grande mesa disposta com todos os livros do senhor amargo. Fascínio puro, outros tantos nomes esdrúxulos – o leitor pode achar que a palavra “esdrúxula” é muito erudita para Andrezinho mas, lembre-se, trata-se do menino das letras que não perde a oportunidade de mostrar seus conhecimentos!
Na beirada da estante, percebeu um retrato do escritor em preto e branco, encimado pela frase “Saudade não tem remédio” e, ao lado, “1922-2010”. Primeiro, a frase, que supôs ser uma das preferidas do escritor, tocou-lhe a alma, ali onde ele sentira o sentimento nostálgico de nunca vir a conhecer pessoalmente o ancestral; segundo, fez as contas rapidamente e constatou que o senhor amargo morrera com 88 anos, tempo pra caraça na mente do garoto, embora certamente fugaz para o velho morto. E, abaixo, o mesmo nome rabiscado, igualzinho ao que vira no livro do pai.
O menino dirige-se ao vendedor:
– Por favor, quanto custa?
– Qual deles?
– Este, apontando para o retrato.
– Não, este não está à venda, é da editora, apenas chama a atenção para os livros.
– Mas eu quero comprar, quer dizer, peço pro meu pai comprar...
– Não dá! Temos que devolver para a editora.
O vendedor afasta-se para atender outro cliente, deixando um Andrezinho atônito, com uma enorme frustração tomando conta de sua alma. Jamais se encontraria pessoalmente com o senhor amargo para obter o seu nome rabiscado e a oportunidade de consegui-lo acabava de escapar-lhe!
Uma raiva incontida transformou-se em súbita ousadia e se apossou do garoto. Olhou para os lados e percebendo-se desapercebido pelas pessoas que estavam ao redor, tomou o mostruário com a foto, a frase, a data do nascimento e da morte, e a assinatura do escritor, levantou a blusa, enfiou o ainda quase furto na cintura, baixou a blusa, convencido da experiência única de transgressão perpretada, mas com a alma lavada. Dirigiu-se ao pai: – Pai, cansei de ver os livros, te espero na sorveteria.
Roque Tadeu Gui