A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Instinto (Cenas de um romance familiar)

O pai era homem de princípios.

E um desses princípios comandava que dinheiro não faz bem em mãos de criança. Se os filhos desejam alguma coisa, que peçam, se eu puder atender, ótimo, se não puder atender, conformem-se, será mais uma prova neste mundo de expiações e provas.

Assim pensava, assim agia o pai. Acontece que ele levava tais ideias ao extremo, digamos às últimas consequências, excedia-se num fundamentalismo que o distanciava das mais evidentes circunstâncias, incluindo aquelas mais primitivas e portanto básicas, como a fome e a sede.

Mas os filhos crescem. Até certa idade Pedro e Paulo jamais sentiram falta de dinheiro no bolso. Se desejavam um guaraná, Pai, dá um guaraná?, se desejavam uma empadinha, Pai, dá uma empadinha?, pedidos simples e esparsos, não havia shopping centers naquela época, a oferta de comes e bebes resumia-se a ida ao futebol nas tardes de domingo, quando cruzavam com uma carrocinha de pipoca ou algodão doce, e tais singelos pedidos simples e esparsos eram atendidos prontamente pelo pai provedor.

Mas os filhos cresceram e, aos poucos, deixaram de pedir. Pedir tornou-se embaraçoso, incômodo, desconfortável mesmo, manifestação de fraqueza, algo indigno (embora esta palavra não pudesse ser proferida naquela época por ainda desconhecida, o sentimento já estava presente), verdadeira humilhação, Paulo, tem graça agora a gente implorar por um sorvete!, É, Pedro, o que custava ele pagar uma coca-cola?, Ele é pão-duro, Paulo!, Uma sacanagem isso, né, Pedro..., E ainda faz cara feia, Paulo! Preferível, pois, a privação, a falta, a fome e a sede. Estoicos meninos.

Havia, porém, uma determinada situação em que predominava o instinto, as vísceras falavam mais alto, e o tal estoicismo ia para o brejo, a humilhação era esquecida, a fraqueza convertia-se em coragem, à merda com a dignidade: quando o nariz era inundado pelo perfume mais embriagador, na boca um jorro contínuo de saliva, o estômago a contorcer-se e secretar, as tripas roncavam tão alto que era possível ouvi-las do outro lado da rua, a vista turva (pela fumaça ou pelo desejo?), o coração disparado na tentativa de dar conta de tantas e tamanhas emoções.

Em se tratando de dois meninos às portas da adolescência, nada mais razoável que pensar que estamos descrevendo o encontro iminente com a primeira namorada. Paulo ainda não, mas Pedro andava de fato de olho virado para um rabo de saia, a moça vizinha de nome Heloisa e sobrenome ilustre, a família de posses, linda lourinha de farmácia que costumava tomar banho de sol nos fundos do quintal com as pernas de fora, uma loucura, Como levá-la ao cinema se não tenho trocado nem mesmo pra pipoca?, ruminava o desalentado Pedro; estas - e outras ideias! - passavam-lhe pela cabeça, e o pai inflexível, Dinheiro em mão de criança não produz coisa boa!

Que nada! Heloisa não tinha nada a ver com isso! O terremoto, a convulsão, a reviravolta das vísceras, a força bruta do instinto ainda não se devia à força das glândulas: tudo aquilo acontecia era quando os meninos passavam diante de uma carrocinha de churrasquinho de gato, a exalar aquele cheirinho delicioso e irresistível do interdito churrasquinho!

Até hoje, Pedro e Paulo, adultos, os filhos criados, com netos, se cruzam nas ruas com o tal perfume e a tal fumaça, pode-se ouvir do outro lado da rua o frear brusco do carro, param, descem, Moço, dá aí um churrasquinho!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O "alemão" do Juninho

Aos quatro anos, Juninho era dessas crianças cheias de energia, dessas que conseguem se divertir muito transformando sucatas em preciosos brinquedos. A família morava numa casa modesta no interior de uma cidade do Norte do País. O pai, habilidoso marceneiro, popular na cidade, tido como um sujeito pacato e honesto. A mãe, dedicada costureira, muito trabalhadora, conhecida nas redondezas como Dona Zinha. Juninho cresceu ao lado de muitas crianças. Apesar de filho único, sempre foi cercado de companheiros para brincar. Na região onde moravam tudo era muito simples, os recursos muito escassos; porém, havia ali alegria, gente falando com gente, sorrisos, abraços, muita solidariedade. Os vizinhos se visitavam, havia bailes nos fins-de-semana, bolos de aniversário, no centro da praça principal, para a comemoração dos aniversários mensais. Havia sossego. O contato com o mundo vinha de algumas televisões e rádios da redondeza. Certo dia, Juninho estava entretido com seus brinquedos e amigos quando viu uma imagem na televisão que despertou seu interesse: eram homens, muitos homens, vestidos de forma estranha, com algumas coisas nas mãos, uns chapéus na cabeça, carros e outras coisas gigantes que passavam por cima de outras coisas, pessoas correndo, fogo, muito barulho e um moço que dizia “guerra” na televisão. Juninho correu para o pai. Muito assustado, olhou para ele e perguntou: “pai, o que é guerra?” O pai, muito desconcertado, afinal não esperava uma pergunta dessas, vinda do menino, pensou um pouco, respirou fundo, e disse: “filho, guerra é quando as pessoas não se entendem; quando há brigas; quando umas pessoas correm atrás das outras com revólveres, espingardas, facas, bazucas; é quando o céu fica preto de tanta poeira e as pessoas sujas de tanto lutar; é quando a conversa já não resolve; é quando as pessoas perdem o juízo, se é que, algum dia, o tiveram; é quando não há paz”. Juninho, muito pensativo, fez a derradeira pergunta: “pai, dá pra comprar uma bazuca da paz?”