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sábado, 29 de janeiro de 2011

Um romance para Cristina

Era ainda muito menina quando Cristina conheceu sua primeira paixão, nos tempos em que se inicia a despedida da inocência. Aconteceu numa rápida invasão ao quarto ocupado pela irmã moça, para a caçula uma espécie de ideal de gente grande que usa batom e vestido com peitos salientes e sempre que passava as férias na casa da família enchia os olhos de Cristininha de puro encanto e admiração, nos quais facilmente se podia ler: quando-crescer-quero-ser-igualzinha-a-você. Pois não se trata da paixão pela irmã universitária: esse apego nem se sabe quando começou, sempre existiu e num futuro ainda distante se transformaria numa amizade fecunda e cúmplice entre duas irmãs adultas.

À espreita dos pertences da irmã, o que lhe garantia a diversão das férias invariavelmente gastas no sítio da família, Cristininha esbarrou numa pilha de livros de gente grande. Menininha prodígio, menos mimada do que interessada no mundo dos maiores, lia desde os 5 anos, não demoraria muito completaria 10, já estava cansada das histórias pueris contadas nos livros da biblioteca da escola. Ali sim, no pequeno acervo da irmã de costumes de cidade grande, dona do próprio nariz e longe do domínio dos pais, ali deveria encontrar histórias de adultos, suas tramas, segredos, paixões, amores carnais, as tentações e perigos de um mundo obscuro (só as crianças dormem à noite), seduzindo com luzes coloridas, música e drogas no interior das boates e casas noturnas ou se escondendo entre quatro paredes, num quarto de motel.

O mundo de sua curiosidade não mais inocente estava todo ali! Na leitura de férias da irmã, os diários de Anaïs Nin, uma edição gasta de Delta de Vênus e um exemplar de sebo de A Casa do Incesto. Acompanhando a literatura erótica da autora francesa, o romance escrito por seu amante Henry Miller, Trópico de Câncer, publicado pela primeira vez em 1934 e proibido nos Estados Unidos até 1961. Verdadeiro deleite para Cristininha aquelas férias. Todas as tardes, apressava-se em cumprir sua cota nos afazeres domésticos, ordem expressa da mãe, enveredava pelo quarto da irmã, sequestrava-lhe uma de suas preciosidades literárias e se trancava em seu iluminado quarto, percorrendo com a sede da volúpia púbere dezenas de páginas diárias, até que a noite adentrasse o quarto com um vento fresco e a tênue claridade da lua, insuficiente para saciar o anseio pelo próximo capítulo. A inexistência de luz elétrica no sítio devia-se a um capricho ancestral do pai, auto-intitulado amigo da natureza, um desses insuportáveis xiitas ecológicos. Depois do jantar, a sobremesa era degustada pela menina no próprio quarto à luz de uma robusta lamparina. No prato, mais uma leitura secreta, os poemas de Bocage.

Aquele verão no sítio transformou Cristininha numa contumaz devoradora de livros. No verão seguinte, sempre provida da pilha de livros da irmã, renovada a cada novo retiro no sítio, Cristininha penetrou no Complexo de Portnoy, com o qual Philip Roth escandalizou meio mundo e foi consagrado pela outra metade no final dos anos 60, revelando de um jeito engraçadíssimo o fantástico e sombrio mundo de Alexander Portnoy, seus problemas sexuais, suas impropriedades masturbatórias e sua tirana mãe judaica. A menina cujos olhos brilhavam ao ver qualquer conjunto de letras impressas em folhas de papel ordenadas e encadernadas sob uma capa e título sugestivos também visitou a obra de Saramago. Estavam lá, na coleção de férias da irmã, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. Isto pra começar. Nas férias de julho percorreu novos volumes de Saramago, os romances de Edgar Allan Poe, outros policiais mais despretensiosos. No verão seguinte, a obra completa de Nélson Rodrigues, começando por Os Sete Gatinhos, e os contos eróticos de Boccaccio, o amigo de Petrarca.

Pouco provável que nossa obstinada leitora mirim se revelasse uma pervertida garota a se excitar com os produtos mentais, certamente pornográficos, de sua leitura nada convencional. O erotismo brotado das páginas vorazmente consumidas por Cristina só aguçou seu gosto pelos livros, apurado pelos mais variados estilos e autores da literatura clássica e contemporânea. As obras selecionadas nas férias seguintes foram Dom Quixote, Morte em Veneza e O Estrangeiro, de Alberto Camus, também folheou Dostoiévski e encarou a interminável leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Cristininha contentou-se com a primeira e maior paixão. Tornou-se uma escritora de sucesso, com imaginação inesgotável para as tramas e desfechos contados em contos e romances, talvez as histórias não vividas no mundo da não-ficção. Instalou-se no velho sítio da família e busca sua matéria-prima em garimpos na internet, visitando sítios de relacionamentos e redes sociais virtuais. Sempre às tardes, depois de cumprir as tarefas domésticas e alimentar seus sete gatinhos, adentra o antigo quarto da irmã, senta-se frente ao seu notebook e começa a espiar os segredos e intimidades alheias, descuidosamente largados na internet. Ainda hoje sente na saliva um leve gosto do proibido.

Cláudia Carneiro

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