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sábado, 20 de fevereiro de 2010

Despedida

A hora da despedida é sempre um trago seco de aguardente. Marta não chegou a deitar-se. Apoiou-se a meias-pernas no sofá à minha esquerda, olhou-me enviesada e tomou fôlego. Recolheu coragem e anunciou seu adeus. A garganta travou, o gole desceu queimando o peito, só instantes depois me recuperei do susto e o ar voltou a habitar meus pulmões. Tentei fazer cara de cachorro acompanhando procissão ao meio-dia, sei lá dessas reações da gente que não quer revelar o desgosto da separação. Mas o desgosto estava ali, provavelmente saindo por alguma fresta de minhas ventas ou tentando se esconder nas dobras entre-sobrancelhas.
Todo aquele que sobrevive foi deixado algum dia, observou a colega, trazendo-me reflexão e certo alívio. Óbvia constatação, que de natural não tem nada. O natural-humano, quando as vísceras dão a liga que a alma clama, é unir-se, juntar-se, compartilhar. Se a liga visceral for muito espessa, o risco é de grudar.
Separação é sempre um corte na carne. Aquele que é deixado pode até ser tolerante à dor e prover cicatrização rápida. Em questão de horas o corte começa a se fechar, quando se reconcilia com a natureza das coisas: não há partida sem encontro; não há corte sem um tecido ligado que ofereça a musculatura que tensiona, relaxa e assim se movimenta. Para se morrer, tem que se viver, estar vivo.
Cinco anos se passaram, cinquenta minutos chegavam ao fim. O ar pesado, parado, do início de nosso último encontro foi-se dissipando, a conversa fluiu, os medos e dúvidas entremeavam o desejo de ir embora e prosseguir sozinha, mas estes são os temperos de toda despedida. Marta pôde dizer adeus, eu acolhi sua escolha. Antes de sair, deixou um e entre nós que permaneceu na sala e repousou em minha mente.
Talvez só tenhamos coragem de partir porque acreditamos em alguma continuidade. Coisa de maluco.

Cláudia Carneiro

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