Oração pelas causas (quase) impossíveis
Meu velho compadre, se a causa não fosse tão absurda, é certo que lhe pouparia o espanto e evitaria importuná-lo nesses tempos de descanso.
Você que é um homem de fé e perseverança, interceda por mim, mísero descrente, junto a que ou a quem nessas horas lhe é providente.
Vamos logo à causa, não tenho todo o tempo do mundo: tornei-me um homem de letras e desde então tenho uma bíblia, guia de toda-hora, tão pesada quanto a sua. Pois há poucos meses estava eu a desvendar segredos do mestre Ouais, meu rosário de toda manhã, quando topei com a palavra estrepe. Que diacho!, pensei. O nome disso não é ferpa, ou certo será feupa?, Ah! Qual diferença! Pois enquanto me distraía com meu próprio falatório, eis que a palavra saltou do Grande Livro e, acredite, compadre, com fé: o estrepe entrou pelo meu pé.
No começo era uma dor fina, aguda, mas a verdade, velho camarada, é que aos poucos a gente vai se acostumando. O torpor inicial passou, estranhei-me quando senti minhas partes queimarem, a cabeça tontear, as pernas bambearem. Era meu corpo já inflamado pela invasão do tal estrepe que percorria membros e tronco para então, pasme, amigo, alojar-se no coração.
Coisa ridícula, compadre!, já não tenho idade para isso. Espinho no coração! Ah, poesia de mau gosto, meu velho! Ponta de lança fincada assim, isso é coisa pra São Sebastião, não pra mim!
E por lembrar o santo, você que é devoto de Santo Expedito, cuidador das causas impossíveis, não se esqueça de incluir este amigo em sua prece, pobre diabo a temer não ter cura o mal do qual padece.
Restou-me entender o acontecido e, para tanto, recorri à definição retida na minha bíblia. Sofregamente tentei esmiuçá-la, escapada estava a palavra do meu mal. Um espinho, abrolho, pua, ponta aguda como a minha dor. Estrepe serve também às guerras e conflitos: artefato pontiagudo, de madeira ou ferro ou outro elemento, fincado em fossos e valas e se não dificulta a passagem do inimigo para o outro lado, pode matá-lo empalado.
Certo é que entrei numa estrepada. Situação bananosa, dificuldade, baralhada. Desse embaraço preciso me salvar e apelo para sua devoção a Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Estou sangrando, tenha dó e peça por mim, meu velho amigo dos pileques, arruaças e madrugadas sem fim.
Você há de concordar comigo: um estrepe, quando diz respeito a pessoa que não agrada ou não presta, nunca é bem-vindo. Pior quando o termo trata de “mulher magra, de aspecto ruim”, pelo parecer do mestre Ouais. Compadre, você bem se lembra de que nunca fomos chegados a uma gata seca. Mulher bicho-bom é cheinha, roliça, coxas curtinhas e grossas. E se ainda hoje uma dessas à minha frente passar, pode estar certo, parceiro, a coisa não vai prestar!
Melhor dor no peito do que mulher feia, febre alta que pessoa desagradável. Decidi ficar com a primeira definição de estrepe, espinho que carrego no peito, e joguei fora o resto. A dor aliviou, mas o coração ainda sangra. Tropecei na palavra seguinte, estrepitante, e já me encrenquei novamente.
Tem jeito não, só a Santíssima Trindade para desatar meu caso impossível. Se me estrepo é que ainda sou tosco, mas a verdade, compadre, é que eu gosto!
Cláudia Carneiro