A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

terça-feira, 20 de abril de 2010

E de estrepe

Oração pelas causas (quase) impossíveis

Meu velho compadre, se a causa não fosse tão absurda, é certo que lhe pouparia o espanto e evitaria importuná-lo nesses tempos de descanso.

Você que é um homem de fé e perseverança, interceda por mim, mísero descrente, junto a que ou a quem nessas horas lhe é providente.

Vamos logo à causa, não tenho todo o tempo do mundo: tornei-me um homem de letras e desde então tenho uma bíblia, guia de toda-hora, tão pesada quanto a sua. Pois há poucos meses estava eu a desvendar segredos do mestre Ouais, meu rosário de toda manhã, quando topei com a palavra estrepe. Que diacho!, pensei. O nome disso não é ferpa, ou certo será feupa?, Ah! Qual diferença! Pois enquanto me distraía com meu próprio falatório, eis que a palavra saltou do Grande Livro e, acredite, compadre, com fé: o estrepe entrou pelo meu pé.

No começo era uma dor fina, aguda, mas a verdade, velho camarada, é que aos poucos a gente vai se acostumando. O torpor inicial passou, estranhei-me quando senti minhas partes queimarem, a cabeça tontear, as pernas bambearem. Era meu corpo já inflamado pela invasão do tal estrepe que percorria membros e tronco para então, pasme, amigo, alojar-se no coração.

Coisa ridícula, compadre!, já não tenho idade para isso. Espinho no coração! Ah, poesia de mau gosto, meu velho! Ponta de lança fincada assim, isso é coisa pra São Sebastião, não pra mim!

E por lembrar o santo, você que é devoto de Santo Expedito, cuidador das causas impossíveis, não se esqueça de incluir este amigo em sua prece, pobre diabo a temer não ter cura o mal do qual padece.

Restou-me entender o acontecido e, para tanto, recorri à definição retida na minha bíblia. Sofregamente tentei esmiuçá-la, escapada estava a palavra do meu mal. Um espinho, abrolho, pua, ponta aguda como a minha dor. Estrepe serve também às guerras e conflitos: artefato pontiagudo, de madeira ou ferro ou outro elemento, fincado em fossos e valas e se não dificulta a passagem do inimigo para o outro lado, pode matá-lo empalado.

Certo é que entrei numa estrepada. Situação bananosa, dificuldade, baralhada. Desse embaraço preciso me salvar e apelo para sua devoção a Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Estou sangrando, tenha dó e peça por mim, meu velho amigo dos pileques, arruaças e madrugadas sem fim.

Você há de concordar comigo: um estrepe, quando diz respeito a pessoa que não agrada ou não presta, nunca é bem-vindo. Pior quando o termo trata de “mulher magra, de aspecto ruim”, pelo parecer do mestre Ouais. Compadre, você bem se lembra de que nunca fomos chegados a uma gata seca. Mulher bicho-bom é cheinha, roliça, coxas curtinhas e grossas. E se ainda hoje uma dessas à minha frente passar, pode estar certo, parceiro, a coisa não vai prestar!

Melhor dor no peito do que mulher feia, febre alta que pessoa desagradável. Decidi ficar com a primeira definição de estrepe, espinho que carrego no peito, e joguei fora o resto. A dor aliviou, mas o coração ainda sangra. Tropecei na palavra seguinte, estrepitante, e já me encrenquei novamente.

Tem jeito não, só a Santíssima Trindade para desatar meu caso impossível. Se me estrepo é que ainda sou tosco, mas a verdade, compadre, é que eu gosto!

Cláudia Carneiro

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O filho

“Teodoclus Miranda, psicanalista”. Era desse jeito que ele se apresentava. O nome assim misturado, herdado do pai grego e da mãe brasileira; chamado de Dr. Teo pelos pacientes, mas apenas nos encontros iniciais, e pelos amigos apenas de Teo. Aos 40 anos, quando fazia seu pós-doc em Tavistock, casou-se com Helen Thompson, analista inglesa muito conhecida no meio psicanalítico londrino. Amaram-se enlouquecidamente e dessa união nasceu Sinclair, filho único e querido de Teo. Paixão arrefecida, o casal se separou e Teo voltou sozinho para o Brasil, estabelecendo-se na Capital, onde reside há mais de 20 anos. Sinclair ficou com a mãe, foi educado no Reino Unido, formou-se, é um médico conceituado em Londres, e conversa com pai pelo skype algumas vezes por semana.

Quem contava essa história era o próprio Teo, mas somente para os amigos mais próximos – sou um deles, apesar de, então, conhecê-lo há tão pouco tempo – e somente quando se encontrava em estado saudoso e melancólico, geralmente após algumas taças do Borgonha que tanto apreciava. Dizia que vinho espanta depressão como essência de cravo espanta pernilongo.

Teo, analista respeitável, estimado por amigos e pacientes, levava uma vida de trabalho. Seu lazer predileto era ler a boa literatura e aventurar-se a escrever contos policiais; dizia que a literatura mantinha sua imaginação afiançada e o ajudava a sonhar seu trabalho de analista. Outro de seus ditos famosos: uma vida sem liberdade ficcional não vale a pena ser vivida! Se não sonhamos, morremos! Dizia isso geralmente após algumas taças de Bourgonha. Este era Teo, um operário da psiquê: uma vida ascética – exceto pelo louvor etílico a Dionísio –, solitária, cercado de um punhado de pacientes e outro punhado de amigos, dois cães, um punhado de livros e uma estante de contos não publicados.

Certa ocasião, Teo convidou-me para jantar em sua casa. Tomaríamos um vinho reservado para ocasiões especiais – certamente um Borgonha! – e falaríamos da vida, o que para Teo significava falar sobretudo do amor que tinha por seu filho Sinclair, de como o garoto crescera esperto e inteligente, de como se formara no Colégio Real de Medicina de Londres, tornando-se um especialista de referência em sua área, etcetera etcetera. Eu já ouvira a história algumas tantas vezes, porque não eam poucas as vezes em que Teo degustava o seu vinho preferido; conversar com Teo era sempre bom, mas eu decididamente prefiria suas histórias sobre como criava contos a partir das experiência ordinárias da vida às lengalengas de sua vida afetiva-familiar. Gostava mesmo era de ver a alegria estampada na face do meu mais novo velho amigo ao contar suas peripécias na vida e na literatura.

Era a primeira vez que iria à casa de Teo e, pelo que sabia, poucos amigos já haviam tido o privilégio. Teo me recebeu no portão do casarão antigo onde morava, convidando-me a entrar; atravessamos um corredor ladeado pelos dois cães amorosamente mansos – só podiam ser de Teo! – e demos numa grande sala. Ali tinha de tudo – um verdadeiro museu de lembranças –, além de três sofás, seis poltronas, duas mesas, uma de jantar para pelo menos doze pessoas, outra menor com quatro lugares, um piano Eisenwolf, com certeza cinquentenário, estantes pelas paredes com centenas de livros, um cuco antigo na parede, duas reproduções baratas de Klint, uma delas de “O Beijo”, um tapete persa surrado, traindo sua idade, mas muito bem conservado, dois abajures ao lado das poltronas, cada qual com uma mesinha com três ou quatro livros desarrumados; sobretudo, chamava a atenção um porta-vela de ferro em forma de sapo pendurado em um canto de paredes. O ambiente parecia refletir a história de Teo, discreto, algo conservador, denso, profundo e... solitário. Minha atenção foi despertada por uma ausência: a de porta-retratos. Nem pai, nem mãe, nem Helen – o que, no caso de Teo, era até compreensível –, mas nem Sinclair! Ocorreu-me que na vida de Teo essas pessoas não tinham uma presença efetiva. Antes que me apropriasse desse pensamento inaudito, fui açodado por um outro, tanto quanto ou ainda mais estranho: não seria Sinclair, o filho amado, mais uma das licenças poéticas tão ao gosto de Teo? A ideia, por mais estranha que pudesse parecer, fazia sentido em se tratando de Teo: de um amor alucinado por Helen à invenção de um filho!

Nunca falei a Teo de minhas suspeitas. Em todas as outras ocasiões em que nos regamos com Borgonha e Teo, invariavelmente, falou a respeito de seu querido Sinclair, respeitei a liberdade ficcional do velho amigo, sem jamais questioná-lo; acredito mesmo que ele sabia que tínhamos um acordo tácito e que eu seria um fiel depositário de seu segredo.

Vinte anos depois, Teodoclus Miranda, já então meu velho amigo, morreu. Fui convidado, por vontade expressa em testamento, a fazer o seu necrológio. Apenas exigiu, gentilmente, como era de seu feitio, que minhas palavras fossem intercaladas por goles de seu Borgonha preferido.

Roque Tadeu Gui

domingo, 18 de abril de 2010

Equus caballus

Dei com ela na livraria, cada um em sua fila do caixa. Lembrou-me uma cavaleira: as calças justas, em tom bege, com aquele recorte nos fundos típico das roupas de montaria, as botas pretas lustras apropriadas para a cavalgada, sem ostentar, contudo, os esporões, camisa azul índigo, igualmente justa, realçando o peito altivo, com a palavra “cavallus” bordada em branco na manga curta. Os óculos de sol trazidos no alto da cabeça, sugeriam as viseiras do animal. Cabelos pretos longos e brilhantes, amarrados em rabo-de-cavalo com um laço preto na nuca batiam na cintura e conferiam-lhe uma imponente feição equina! Enquanto aguardava o passo lento da fila, seus olhos, agora auxiliados por pequenos óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, vasculhavam o livro a ser adquirido. Mas a sua parecença cavalar foi mesmo denunciada pelo olho redondo e negro que, em breve distanciamento da leitura, e por cima da armação óptica, girou para a direita em minha direção: um olhar fogoso e ao mesmo tempo triste, como somente os cavalos possuem. Uma mulher-cavalo.

Roque Tadeu Gui.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Milagre da vida

barriga
cheia de
criança

segunda-feira, 12 de abril de 2010

O mito do vaso partido

O mito surge na ordem do simbólico. Diferentes povos e culturas, antes mesmo dos gregos e seus deuses, habitantes do Olimpo, cultivam, transformam, recriam, atualizam sua própria mitologia. Os mitos, grosso modo, apresentam duas funções básicas: responder a questões que formulamos desde a aurora de nossa infância, a infância da humanidade (“de onde viemos?”, “para onde vamos?”); e, secundariamente, justificar e dar sentido a rituais e costumes incorporados pelas diferentes culturas, ao longo de milênios.

Tais funções, naturalmente, são levadas muito a sério pelo homem, e para muitas pessoas, até hoje, o mito adquire foro de verdade. Eis um mito que, de tanto repetir-se, de geração a geração, ganhou a força de uma verdade: “uma vez quebrado um vaso (de cristal), ele nunca mais será o mesmo!” Ele se aplica, por aqueles que o tomam como verdade ⎯ e é evidente que para tais pessoas não se trata de mito ⎯, especialmente às amizades e às relações amorosas.
Antes de mais nada, é preciso admitir que a expressão “o vaso depois de quebrado” é forte, expressiva, significativa, poderosa até, em virtude de sua contundente concretude, onde vaso é vaso, e alguns acrescentam ainda o material de que o mesmo é constituido, o cristal, algo definitivamente irreparável quando quebrado. A imagem (símbolo) torna-se cristalina e ainda mais verdadeira!

Porém, nossa mente ⎯ poderia chamá-la de psiquismo, alma, espírito etc, a gosto das convicções de cada um ⎯ não é concreta, ela é subjetiva. O concreto pode servir apenas de analogia, para criar a possibilidade de novos pensamentos e ideias. Se o mito adquire força de verdade, apenas nossa capacidade (humana) de pensar pode fazer frente a ele, desmitificando-o.

A impossibilidade de reconstituir “um vaso que se parte” em nossa mente faz supor que somos infalíveis, que não há remédio para os nossos erros. Trata-se da onipotência de pensamento, uma das características marcantes do psiquismo infantil, ainda em desenvolvimento. Em oposição a esta onisciência, equivocar-se é o natural, e deve haver modos de reparação, do contrário a vida (de relação) nos seria insuportável, eivada de permanente culpa.

O ódio, ao outro e em especial a nós mesmos, é que impede a reparação interna. Já o amor, ao contrário, tem efeito restaurador, por sua natureza mesma. Não se trata aqui do amor piegas, moralista, interesseiro, egoísta, pequeno. Trata-se de um sentimento incrivelmente forte, que não sabemos exatamente de onde vem, quando, e como surge no ser humano. Terá surgido — quando surge! — da primeira relação, com a mãe?

Vamos chamar de não-mito, ou a verdade possível, o fato de que, diante do “vaso quebrado”, possa surgir oportunidade única de crescimento psíquico, de tolerância a nós mesmos e à nossa natureza, a possibilidade de enfrentarmos nossa falibilidade, fragilidade, fraqueza, o não-saber, enfim. E reconhecer que somos apenas uma partícula nesse vastíssimo universo incompreensível e misterioso, a nossa condição humana.

O embate entre o mito e a verdade possível representa a peleja constante entre a necessidade de saber e a dificuldade de permanecer na ignorância. É a necessidade de saber que nos faz criar o mito. Necessidade de saber pode gerar ódio, diante do fato inquestionável de que nada sabemos; permanecer na ignorância, aceitando tal condição, pode gerar o sentimento amoroso da tolerância (aos objetos externos e internos, especialmente a estes últimos).

O que o homem pode fazer diante da verdade possível, inspirada pelo sentimento amoroso? Quando um vaso (concreto) de pedra, barro ou cristal se quebra, o homem constrói um novo vaso. Os cacos daquele que se quebrou viram objeto da arqueologia, têm sua importância, mesmo na condição de cacos. Por analogia, e apenas por analogia, diante da subjetividade de nossa mente, podemos pensar que assim vão se constituindo nossas experiências emocionais ao longo da vida: ao refazê-las a cada novo dia, temos a oportunidade de aprender com elas, de crescer a partir delas. Aquilo que se quebra em nosso espírito pode então ser reparado.

As experiências já vividas fazem parte da nossa arqueologia psíquica, têm seu valor, mas são passado, diante do novo dia. O que temos a perder diante do novo dia, que nunca sabemos como vai ser? Ou escolhemos o ódio, e então não haverá possibilidade de reparação ⎯ o mito do vaso partido ⎯, ou escolhemos o amor, que haverá de reconstruir nossa realidade psíquica, para poder viver este novo dia. A escolha é sempre de cada um de nós: mito e verdade, ódio e amor.

André Vianna