Tais funções, naturalmente, são levadas muito a sério pelo homem, e para muitas pessoas, até hoje, o mito adquire foro de verdade. Eis um mito que, de tanto repetir-se, de geração a geração, ganhou a força de uma verdade: “uma vez quebrado um vaso (de cristal), ele nunca mais será o mesmo!” Ele se aplica, por aqueles que o tomam como verdade ⎯ e é evidente que para tais pessoas não se trata de mito ⎯, especialmente às amizades e às relações amorosas.
Antes de mais nada, é preciso admitir que a expressão “o vaso depois de quebrado” é forte, expressiva, significativa, poderosa até, em virtude de sua contundente concretude, onde vaso é vaso, e alguns acrescentam ainda o material de que o mesmo é constituido, o cristal, algo definitivamente irreparável quando quebrado. A imagem (símbolo) torna-se cristalina e ainda mais verdadeira!
Porém, nossa mente ⎯ poderia chamá-la de psiquismo, alma, espírito etc, a gosto das convicções de cada um ⎯ não é concreta, ela é subjetiva. O concreto pode servir apenas de analogia, para criar a possibilidade de novos pensamentos e ideias. Se o mito adquire força de verdade, apenas nossa capacidade (humana) de pensar pode fazer frente a ele, desmitificando-o.
A impossibilidade de reconstituir “um vaso que se parte” em nossa mente faz supor que somos infalíveis, que não há remédio para os nossos erros. Trata-se da onipotência de pensamento, uma das características marcantes do psiquismo infantil, ainda em desenvolvimento. Em oposição a esta onisciência, equivocar-se é o natural, e deve haver modos de reparação, do contrário a vida (de relação) nos seria insuportável, eivada de permanente culpa.
O ódio, ao outro e em especial a nós mesmos, é que impede a reparação interna. Já o amor, ao contrário, tem efeito restaurador, por sua natureza mesma. Não se trata aqui do amor piegas, moralista, interesseiro, egoísta, pequeno. Trata-se de um sentimento incrivelmente forte, que não sabemos exatamente de onde vem, quando, e como surge no ser humano. Terá surgido — quando surge! — da primeira relação, com a mãe?
Vamos chamar de não-mito, ou a verdade possível, o fato de que, diante do “vaso quebrado”, possa surgir oportunidade única de crescimento psíquico, de tolerância a nós mesmos e à nossa natureza, a possibilidade de enfrentarmos nossa falibilidade, fragilidade, fraqueza, o não-saber, enfim. E reconhecer que somos apenas uma partícula nesse vastíssimo universo incompreensível e misterioso, a nossa condição humana.
O embate entre o mito e a verdade possível representa a peleja constante entre a necessidade de saber e a dificuldade de permanecer na ignorância. É a necessidade de saber que nos faz criar o mito. Necessidade de saber pode gerar ódio, diante do fato inquestionável de que nada sabemos; permanecer na ignorância, aceitando tal condição, pode gerar o sentimento amoroso da tolerância (aos objetos externos e internos, especialmente a estes últimos).
O que o homem pode fazer diante da verdade possível, inspirada pelo sentimento amoroso? Quando um vaso (concreto) de pedra, barro ou cristal se quebra, o homem constrói um novo vaso. Os cacos daquele que se quebrou viram objeto da arqueologia, têm sua importância, mesmo na condição de cacos. Por analogia, e apenas por analogia, diante da subjetividade de nossa mente, podemos pensar que assim vão se constituindo nossas experiências emocionais ao longo da vida: ao refazê-las a cada novo dia, temos a oportunidade de aprender com elas, de crescer a partir delas. Aquilo que se quebra em nosso espírito pode então ser reparado.
As experiências já vividas fazem parte da nossa arqueologia psíquica, têm seu valor, mas são passado, diante do novo dia. O que temos a perder diante do novo dia, que nunca sabemos como vai ser? Ou escolhemos o ódio, e então não haverá possibilidade de reparação ⎯ o mito do vaso partido ⎯, ou escolhemos o amor, que haverá de reconstruir nossa realidade psíquica, para poder viver este novo dia. A escolha é sempre de cada um de nós: mito e verdade, ódio e amor.
André Vianna
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