“Teodoclus Miranda, psicanalista”. Era desse jeito que ele se apresentava. O nome assim misturado, herdado do pai grego e da mãe brasileira; chamado de Dr. Teo pelos pacientes, mas apenas nos encontros iniciais, e pelos amigos apenas de Teo. Aos 40 anos, quando fazia seu pós-doc em Tavistock, casou-se com Helen Thompson, analista inglesa muito conhecida no meio psicanalítico londrino. Amaram-se enlouquecidamente e dessa união nasceu Sinclair, filho único e querido de Teo. Paixão arrefecida, o casal se separou e Teo voltou sozinho para o Brasil, estabelecendo-se na Capital, onde reside há mais de 20 anos. Sinclair ficou com a mãe, foi educado no Reino Unido, formou-se, é um médico conceituado em Londres, e conversa com pai pelo skype algumas vezes por semana.
Quem contava essa história era o próprio Teo, mas somente para os amigos mais próximos – sou um deles, apesar de, então, conhecê-lo há tão pouco tempo – e somente quando se encontrava em estado saudoso e melancólico, geralmente após algumas taças do Borgonha que tanto apreciava. Dizia que vinho espanta depressão como essência de cravo espanta pernilongo.
Teo, analista respeitável, estimado por amigos e pacientes, levava uma vida de trabalho. Seu lazer predileto era ler a boa literatura e aventurar-se a escrever contos policiais; dizia que a literatura mantinha sua imaginação afiançada e o ajudava a sonhar seu trabalho de analista. Outro de seus ditos famosos: uma vida sem liberdade ficcional não vale a pena ser vivida! Se não sonhamos, morremos! Dizia isso geralmente após algumas taças de Bourgonha. Este era Teo, um operário da psiquê: uma vida ascética – exceto pelo louvor etílico a Dionísio –, solitária, cercado de um punhado de pacientes e outro punhado de amigos, dois cães, um punhado de livros e uma estante de contos não publicados.
Certa ocasião, Teo convidou-me para jantar em sua casa. Tomaríamos um vinho reservado para ocasiões especiais – certamente um Borgonha! – e falaríamos da vida, o que para Teo significava falar sobretudo do amor que tinha por seu filho Sinclair, de como o garoto crescera esperto e inteligente, de como se formara no Colégio Real de Medicina de Londres, tornando-se um especialista de referência em sua área, etcetera etcetera. Eu já ouvira a história algumas tantas vezes, porque não eam poucas as vezes em que Teo degustava o seu vinho preferido; conversar com Teo era sempre bom, mas eu decididamente prefiria suas histórias sobre como criava contos a partir das experiência ordinárias da vida às lengalengas de sua vida afetiva-familiar. Gostava mesmo era de ver a alegria estampada na face do meu mais novo velho amigo ao contar suas peripécias na vida e na literatura.
Era a primeira vez que iria à casa de Teo e, pelo que sabia, poucos amigos já haviam tido o privilégio. Teo me recebeu no portão do casarão antigo onde morava, convidando-me a entrar; atravessamos um corredor ladeado pelos dois cães amorosamente mansos – só podiam ser de Teo! – e demos numa grande sala. Ali tinha de tudo – um verdadeiro museu de lembranças –, além de três sofás, seis poltronas, duas mesas, uma de jantar para pelo menos doze pessoas, outra menor com quatro lugares, um piano Eisenwolf, com certeza cinquentenário, estantes pelas paredes com centenas de livros, um cuco antigo na parede, duas reproduções baratas de Klint, uma delas de “O Beijo”, um tapete persa surrado, traindo sua idade, mas muito bem conservado, dois abajures ao lado das poltronas, cada qual com uma mesinha com três ou quatro livros desarrumados; sobretudo, chamava a atenção um porta-vela de ferro em forma de sapo pendurado em um canto de paredes. O ambiente parecia refletir a história de Teo, discreto, algo conservador, denso, profundo e... solitário. Minha atenção foi despertada por uma ausência: a de porta-retratos. Nem pai, nem mãe, nem Helen – o que, no caso de Teo, era até compreensível –, mas nem Sinclair! Ocorreu-me que na vida de Teo essas pessoas não tinham uma presença efetiva. Antes que me apropriasse desse pensamento inaudito, fui açodado por um outro, tanto quanto ou ainda mais estranho: não seria Sinclair, o filho amado, mais uma das licenças poéticas tão ao gosto de Teo? A ideia, por mais estranha que pudesse parecer, fazia sentido em se tratando de Teo: de um amor alucinado por Helen à invenção de um filho!
Nunca falei a Teo de minhas suspeitas. Em todas as outras ocasiões em que nos regamos com Borgonha e Teo, invariavelmente, falou a respeito de seu querido Sinclair, respeitei a liberdade ficcional do velho amigo, sem jamais questioná-lo; acredito mesmo que ele sabia que tínhamos um acordo tácito e que eu seria um fiel depositário de seu segredo.
Vinte anos depois, Teodoclus Miranda, já então meu velho amigo, morreu. Fui convidado, por vontade expressa em testamento, a fazer o seu necrológio. Apenas exigiu, gentilmente, como era de seu feitio, que minhas palavras fossem intercaladas por goles de seu Borgonha preferido.
Roque Tadeu Gui
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