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sábado, 31 de julho de 2010

Lello & irmãos

Da série Infância

Aquilo acontecia principalmente ao final das refeições, a consulta ao dicionário.

As refeições constituíam-se sempre num momento solene para a família. O pai, à cabeceira, tomava seu lugar invariavelmente alguns minutos antes de servida a comida, e ai de um filho se não estivesse à mesa, e de mãos lavadas. A mãe destampava a panela e o arroz fumegante exalava um perfume característico, penetrante, inesquecível. Adorava receber o elogio raro e sincero, Ninguém faz um arroz como esse.

Todos comiam de início em silêncio, que o alimento precisava ser ingerido bem quente, uma das inúmeras manias do pai. À hora da sobremesa a conversação era mais que desejada, era mesmo incentivada. Os meninos então matracavam matracavam matracavam. Pai, o que é matraca? O pai fingia que não sabia e, solene, Vamos ao Lello!

O Lello Universal era (ainda é?) um dicionário enciclopédico luso-brasileiro, em quatro volumes, publicado pela Livraria Lello & Irmão, editado no Porto, em Portugal, contendo “159.030 artigos, 10.286 gravuras, 264 quadros enciclopédicos e mais de 311 mapas, muitos deles em cores, 96 estampas fotográficas, 605 reproduções de quadros célebres portugueses, brasileiros e estrangeiros”, assim rezava a folha de rosto.

MATRACA, s. f. (ár. mitraka). Instrumento de madeira formado de tabuinhas movediças que se agitam para fazer barulho e que substituem a campainha nas festas da Semana Santa. Fig. Motejo, troça, vaias. (Ao lado do verbete, um pequeno desenho ilustrativo do instrumento.)

E a conversa prosseguia, animada, viva, bem-humorada, à mão os alentados volumes do dicionário, fonte inesgotável de conhecimento, prontos para uma nova consulta, o pai orgulhoso daquele tesouro em sua modesta biblioteca.

Até que um dia...

Paulo, menino pequeno em plena idade dos porquês, largou no ar em alto e bom som, na hora da sobremesa, a pergunta fatídica, Pai o que é boceta?

Seguiu-se, para constrangimento geral, um interminável minuto de silêncio. Pedro, o irmão mais velho e mais sabido, ria por dentro, à espera do que viria então; não tirava os olhos do pai, Como ele vai se sair desta?, e deliciava-se com o embaraço dos adultos. Já sei, Pedro afirmou de súbito, ingenuamente cínico, o risinho dissimulado na voz, Vamos ao Lello!

O constrangimento aumentou. Paulo, onde você ouviu isso?, perguntou o pai tentando escapar à questão fundamental. Foi o Gui que disse, quando reclamei que a bolinha de gude azul era minha, É a boceta da sua mãe, ele disse, mas eu não sei o que é boceta!

Naturalmente, aquela conversa ia de mal a pior; já não era constrangimento, era um pesadelo, era um estorvo. A mãe escafedeu-se: arranjou alguma coisa para fazer na cozinha. O pai olhava para cima, para os lados, para baixo, sem-graça como nunca, contrariadíssimo. Paulo percebeu que havia algo errado, porém, como não sabia mesmo o significado da tal boceta, apenas esperava por uma resposta. Pedro deleitava-se, desfrutava de cada segundo da situação embaraçosa, era quase uma volúpia, tamanhas a sensualidade, a luxúria, a lascívia, a lubricidade, a excitação.

Num laivo de coragem, na esperança de algum milagre que o tirasse daquele enrosco, o pai resolveu encarar, Vamos ao Lello!

BOCETA, s. f. (cast. Boixeta). Pequena caixa, cilíndrica ou oval, de papelão ou madeira. Boceta de Pandora, ver Pandora.

Outros significados o Lello não registrava, seja por pudicícia lusitana, seja por insuficiência vocabular, para desafogo e alívio do pai. Verdadeiro milagre, ele pensou, mas nada disse. Parou por aí. Pedro também pensou que já estava de bom tamanho, nada acrescentou, valeu o aperto.

Desde aquele dia, quando havia o prenúncio de uma pergunta de Paulo, via-se no semblante do pai um certo ar de preocupação. Para felicidade geral, o Lello estava sempre ali, à disposição, contendo toda a sabedoria do mundo.

Hoje, muitos anos passados, Pedro tem em sua casa uma estante repleta de dicionários, incluindo, visto está, o Lello Universal, em edição bem mais modesta. Ambos, Pedro e Paulo, dedicam-se a escrever palavras e mais palavras e mais palavras.

2 comentários:

  1. Caro André,

    Consegui tempo para ler somente agora, num descanso da tese. Genial! Senti que Pedro tem a espirituosidade de Andrezinho , mas, é claro, trata-se apenas de uma coincidência! Parabéns pelo belo conto, delicioso de se ler.

    Roque.

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  2. Muito bom mesmo, tão bom quanto bom entrar nessa oficina e encontrar esses contos que deixam o coração palpitando alegre.
    Obrigada,pessoal.
    Cíntia

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