A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A canequinha

Da série Infância

Pedro acaba de completar 7 anos de idade e vive a expectativa de seu primeiro dia de aula. A mãe, mais aflita que o primogênito, escolhe a dedo a professora, de nome Dulce, amiga da família, reconhecida pela competência no trato com meninos que iniciam a vida de estudantes. Pedro vai até a casa da professora e de lá seguem juntos para o Grupo Escolar Dr. Flamínio Lessa, uma boa caminhada.

Não há qualquer incidente neste primeiro dia de aula, nem tampouco nos dias subsequentes de todo este primeiro ano letivo, a não ser na prova final, quando a diretora escreve na lousa Dê um abraço em sua professora, e Pedro permanece imóvel, petrificado, embora possa ler perfeitamente o que está escrito, apenas não pode obedecer àquela ordem porque não dá conta de lidar com o que ainda não sabe, seu amor por sua professora.

O ano letivo encerra-se, Pedro ganha o Primeiro Lugar do Estabelecimento, porém não comparece para receber o prêmio porque não sabe o significado da palavra Estabelecimento, mas tira nota 10 em todas as matérias, inclusive em Comportamento. Sim, porque esta é a única exigência da mãe desde o primeiro dia de aula, Não admito menos que 10 em Comportamento, nas outras matérias ela não fazia questão da nota máxima, Fique sabendo que apanha se me chegar com um 9,5 de Comportamento no boletim, ela ameaçadora, o tom grave na voz, Pedro sente que se trata de algo muito importante o tal Comportamento, sem saber muito bem o por quê de tanta estridência. Quando crescer, Pedro haverá de ler Shakespeare e deliciar-se com Muito barulho por nada.

Agora, ele acaba de completar 8 anos de idade e inicia o segundo ano primário. A mãe, ainda mais aflita que o primogênito, troca Pedro de escola em busca da melhor professora de segundo ano, Dona Yolanda é ótima, mas cuidado com ela porque é muito brava, a mãe adverte, Se o aluno não responde uma pergunta ele come o giz que ela lhe esfrega nos dentes, acrescenta a mãe terrorista, E em Comportamento então nem se fala, Pedro, é rigorosíssima, ela ameaçadora, a mãe, o tom grave na voz... Pedro agora já sabe o significado do quesito Comportamento, ou pensa que sabe.

O segundo ano está chegando ao fim, faltam dois meses para os exames finais, depois as férias, Pedro brilha em todas as matérias, só há 10 em seu boletim. Até que Dona Yolanda anuncia, sem qualquer sombra de remorso, Pedro, este mês você vai ficar com 9,5 de Comportamento, pois ontem você esqueceu de trazer a canequinha de beber água.

A princípio Pedro não compreende o que acaba de ouvir. Quando crescer, Pedro haverá de ler Saramago e deliciar-se com Ensaio sobre a cegueira, onde lerá “Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”, e ele haverá de formular a paráfrase Se podes ouvir, escuta, se podes escutar, repara. Por ora, Pedro apenas ouve, mas não pode escutar, tampouco reparar no que acaba de ouvir, porque só pode pensar em uma coisa: vai apanhar.

Em poucos meses Pedro terá 9 anos, praticamente um homem, pensa, mas vai apanhar, pensa, terá obrigatoriamente que apanhar, pensa, a mãe não poderá faltar com a palavra, pensa, ela deverá executar a sentença, pensa, pois o veredicto já foi pronunciado, pensa.

Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex!

Porque conhece este gracejo -- todos os meninos de sua idade gostam de repeti-lo! --, Pedro sabe que lei é lei, mas ele não se sente culpado, pensa que não merece o 9,5 por causa do esquecimento, pensa que talvez a mãe possa levar em conta as circunstâncias, afinal trata-se apenas de uma canequinha, e sente muita raiva de Dona Yolanda, Maldita professora, este é o pior palavrão que Pedro conhece aos 8 anos de idade, naturalmente proibidíssimo pelos pais, mas vai repetindo baixinho até chegar em casa, Maldita professora Maldita professora Maldita professora...

Pedro chega, entrega o boletim para a mãe, tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim.

Dói muito mais na mãe.

2 comentários: