A última vez em que esteve em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de sua irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-se particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.
Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria sua solidão, que decidiu ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-lhe paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia seu coração.
A visita improvável causou estranheza ao pai que lá estava. Sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento da querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-o de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.
Felizmente, naquela tarde, ele tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, sentiu que deveria visitar o túmulo da irmã. Depois, foi ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais foi a um velório, acompanhou enterro ou visitou cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu sua avó materna, que morreu de velha e então lhe pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de sua jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos conseguiu se poupar de compromissos funerários.
Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Foi tocado pela tragédia – afinal, tem um filho da mesma idade – e sentiu-se convocado a ir ao funeral. Achou mesmo que já havia se poupado demasiadamente, e isto lhe pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratou de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabou ficando doente, teve febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e ficou de cama. Sentiu-se justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando seus sentimentos, concluiu que escapara da situação. Encheu-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.
No entanto, a ineludível continuará rondando, sabe que não conseguirá despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela o encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que ele ama, alguna daqueles que ele mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela o estará convocando para o encontro fatídico face a face.
Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-lhe que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensou que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.
Foi só. Finados, foi isso. Comeu uma picanha no almoço e bebeu um cabernet sauvignon, brincou com o cachorro e rosnou para sua mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-lhe pela cabeça que no próximo dia de finados irá ao cemitério, honrará seus mortos, renovará suas lágrimas, ainda que isto lhe custe o pressentimento do seu próprio fim. E, quem sabe, conseguirá brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.
Roque Tadeu Gui
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