A última vez em que estevi em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de minha irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-me particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.
Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria minha solidão, que decidi ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-me paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia meu coração.
A visita improvável causou estranheza ao meu pai que lá estava. Ele sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, eu nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento de minha querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-me de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.
Felizmente, naquela tarde, eu tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, senti que deveria visitar o túmulo de minha irmã. Depois, fui ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais fui a um velório, acompanhei enterro ou visitei cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu minha avó materna, que morreu de velha e então me pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de minha jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos consegui me poupar de compromissos funerários.
Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Fui tocado pela tragédia – afinal, tenho um filho da mesma idade – e sentiu-me convocado a ir ao funeral. Achei mesmo que já havia me poupado demasiadamente, e isto me pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratei de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabei ficando doente, tive febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e fiquei de cama. Senti-me justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando meus sentimentos, conclui que escapara da situação. Enchi-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.
No entanto, a ineludível continuará rondando, sei que não conseguirei despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela me encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que amo, alguns daqueles que eu mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela estará me convocando para o encontro fatídico face a face.
Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-me que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensei que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.
Foi só. Finados, foi isso. Comi uma picanha no almoço e bebi um cabernet sauvignon, brinquei com o cachorro e rosnei para minhs mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-me pela cabeça que no próximo dia de finados irei ao cemitério, honrarei seus mortos, renovarei minhas lágrimas, ainda que isto me custe o pressentimento do meu próprio fim. E, quem sabe, conseguirei brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.
Roque Tadeu Gui
Nenhum comentário:
Postar um comentário