A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

terça-feira, 30 de março de 2010

J de giló

– Andrezinho, bela redação a sua – diz a professora Cora entusiasmada – muito bem escrita, bom vocabulário, você usa muito bem o ponto, a vírgula, até o ponto e vírgula. Muito boa mesmo! Pequenos erros ortográficos... Por exemplo, a palavra “jiló”, é com “j” e não com “g”. Semelhante a jabuti, jabuticaba, jaca, jacaré, jaguatirica, jambo, jamelão, janela, japonês, jejum, juiz, jogo. Fora isso, nota 10! Gostei muito!

Andrezinho, já acostumado com os elogios da professora, sente-se orgulhoso e sorri de satisfação: já foi reforçado inúmeras vezes ao apresentar suas redações em sala de aula. É verdade que antes de apresentá-las faz questão de mostrar aos pais, principais incentivadores à arte da escrita que se manifestou precocemente no pequeno André. Leva seu trabalho para a sala de aula respaldado por uma apreciação prévia de seus apoiadores; isto lhe dá segurança de ter feito um bom trabalho.

Um dia após a prova de redação “Alimentos para uma vida saudável”, a professora Cora, como de costume, faz comentários sobre as redações dos alunos. Chega a vez de André.

– Andrezinho, mais uma vez, sua redação está impecável, você tem a imaginação muito fértil, sabe usar as palavras com muita propriedade, usa os verbos com perfeita concordância, tem um vocabulário muito rico. Continua cometendo alguns erros de ortografia, curiosamente com uma palavra sobre a qual já lhe chamei a atenção: “jiló” é com “j” e não com “g”, tal como jenipapo, jequitibá, jesus, jiboia, jipe, joanete, joelho, jornal, jovem, jumento. Lembra-se de que já falamos a respeito? – a professora estranha a persistência do erro de André, menino esperto, aplicado, que aprende tudo rapidamente sem necessidade de reiterações. Por isso mesmo, resolve adotar medidas mais enérgicas para facilitar a memorização da grafia correta da palavra “jiló”.

– Andrezinho, faça o seguinte: traga para mim, na próxima aula, uma folha com a palavra “jiló” escrita 30 vezes. Preste muita atenção a cada vez que você escrever “jiló”, perceba como a palavra fica bem escrita – o jota é uma bela letra, talvez uma das mais elegantes do alfabeto, vem do latim, foi a última a ser incoporada ao nosso idioma, antes da inclusão do “K”, “W” e “Y”, com a nova revisão ortográfica – perceba como a palavra fica equilibrada, bonita. Leia para você mesmo as trinta palavras escritas e memorize que todas elas se escrevem com a letra jota.

Andrezinho desta vez abriu somente meio sorriso. Que coisa mais chata! Escrever 30 vezes a mesma palavra, eu que gosto de escrever, de colocar histórias no papel, dar asas à imaginação. Repetir, repetir, repetir... Coisa mais sem graça.

Dia seguinte, Andrezinho entrega o dever de casa à professora. Título: “J” de Giló. A seguir:

giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló.

Ao final, a assinatura de André, com o nome completo, André Junqueira Alves, que é assim que ele gosta de assinar suas “obras literárias”, tamanho o orgulho que tem de seu incipiente talento de escritor. A seguir, cidade e data.

A professora arregala os olhos, empalidece, não consegue aceitar aquilo que se apresenta aos olhos incrédulos. Começa a suspeitar de um grave quadro de dislexia, talvez um TDAH – que está muito em moda – quem sabe problemas emocionais severos, escondidos por detrás daquela fachada de menino estudioso e inteligente. Resolve chamar os pais e expor o problema. Tem grande apreço por Amdrezinho e não permitirá que ele seja consumido por uma dessas síndromes neuropsiquiátricas que grassam no mundo contemporâneo.

Os pais, preocupados com o alerta da professora, levam Andrezinho ao neurologista que, para espanto de todos, diz que o menino está bem. Por via das dúvidas, levam-no ao psiquiatra que por sua vez também diz que o menino está bem. Levam, então, ao psicólogo que apenas constata que Andrezinho está um pouco tenso e ansioso com toda a confusão que estão fazendo com ele. Desnorteados, os pais resolvem então dar o resto da semana de folga para o filho para que ele possa descansar da correria.
Segunda-feira, de manhã, lá vai André para a aula de português. Traz consigo um texto que escreveu no final de semana, pois que o corre-corre atrás de especialistas o afastaram três dias de suas tarefas. Entrega o texto para a professora Cora:

O Giló

“O giló é considerado um legume, mas, na verdade, é um fruto da família das solanáceas – descobri no google – assim como a berinjela; é parente da jurubeba e do pimentão. O giló é muito comum no Brasil e na África; fiquei pensando se foram os escravos que o trouxeram para o Brasil.
O giló é um alimento muito amargo. Dizem que ele é muito nutritivo, parece que tem muito carboidrato e proteína, cálcio, fósforo, ferro, vitaminas A, B e C. Cozido, e comido, faz bem para gripes, resfriados e febre: é um baita de um alimento. Mas, eu odeio giló! Minha mãe diz que ele é bom para o fígado e para o estômago. Mas, mesmo assim, eu odeio giló! Minha mãe diz que eu não sou uma criança razoável porque se sei que o giló é bom para a saúde então eu deveria comê-lo. Mas eu ODEIO giló!
Um pensamento passou pela minha cabeça nesses dias de “crise do giló”: Porque é tão errado escrever “giló”? Descobri em minhas pesquisas no google – meu pai diz que é uma “fonte confiável”– que a palavra vem do latim, língua que a professora tanto gosta, “Solanun gilo Raddi”. É, parece que mais alguém costuma trocar as letras!”.

André Junqueira Alves

Brasília (DF), 29 de março de 2010.

Nota do autor: Pesquisas subsequentes de Andrezinho – claro que no google – revelam que nos paises da américa espanhola o “giló” (ou “jiló”, como deseja a professora Cora) é conhecido como “gilo del Brasil”.

Roque Tadeu Gui

Nenhum comentário:

Postar um comentário