Ele foi chamado de vira-lata e tomou como elogio: passa fome (emocional), apanha (da vida), chora (de saudade), mas não desiste de viver.
A que viemos?
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Instinto de morte
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Encontro marcado
Ela sempre atrasada e ele sempre adiantado. Resolveram acertar os ponteiros e, na hora certa, viveram felizes para o resto da vida.
Ausência
A saudade era tamanha que ele saiu para comprar cigarros no bar da esquina e nunca mais voltou. Perdeu-se no passado.
Traição
Caminhoneiro, soube que sua mulher havia fugido com seu melhor amigo. Escreveu no para-choque do caminhão: perdoar é fácil, difícil é esquecer.
Anestesia
O autor escrevia para aprender a lidar com sua dor. Certo dia precisou tomar um analgésico e a fonte secou. Nunca mais escreveu uma linha.
Como abotoar uma camisa
- Pedro, olha a sua camisa, está abotoada errado.
- Também não precisa falar assim com o menino...
- Assim como???
- Você traumatiza o menino...
- E como é que você quer que eu fale?
- Fale com jeito, ensine ele abotoar a camisa.
- Você quer dizer do seu jeito, não é?
- Do jeito que deve ser...
- Ah!, sempre do seu jeito!
- E como é que você acha que uma camisa deve ser abotoada, me diga?
- Assim, olhe Pedro, junte o último botão daqui de baixo com a última casa daqui de baixo, assim, abotoe e vá subindo.
- Pedro, é mais fácil juntar o primeiro botão de cima com a primeira casa de cima e ir descendo.
- Mas por que o seu jeito tem que ser sempre o melhor?
- Por que é mais fácil para o menino...
- Pois eu acho mais fácil do meu jeito, ora bolas!
- E eu do meu!!!
- Não precisa gritar!
- Quem está gritando agora é você.
- Por que será que não podemos conversar?
- Porque você não sabe conversar, sua opinião tem que prevalecer sempre.
- É mesmo, você acha que eu faço tudo sempre errado.
- A verdade verdadeira é que...
- Por acaso existe verdade que não seja verdadeira, verdade mentirosa por acaso existe?
- É modo de falar...
- Então fala direito!
- Eu falo como eu quero e pronto.
- Ah!, sei... Você quer que o menino aprenda a falar errado.
- E você pensa que é o dono da verdade.
- Pelo menos quero que ele fale direito, que não me venha com essa bobagem de verdade verdadeira...
- Direito?, direito?, direito?[c1] , só você sabe o que é torto e direito nessa casa?
- E por acaso você sabe?
- Sei... Sei... Sei...
- Merda de vida!
- Você sabe que detesto palavrão!
- Merda de vida!!
- Olha o menino...
- MERDA de vida!!!
...
- Vem cá, Pedro, deixa eu ensinar você a abotoar a camisa.
- Mãe, o que é casa?
Cólera, modo de tratar
Cenas de um romance familiar
Pedro, menino pequeno, sofria de acessos de cólera. Ao perceber no filho tais sentimentos, Otília, a mãe, disparava incontinente as palavras Está com raiva?, tira a cueca e pisa em cima!
Aquilo infalivelmente aumentava a raiva de Pedro, momentaneamente, mas tão logo, calmamente, ele conseguia reorganizar seus infantis pensamentos e especular sobre o possível significado daquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, quando Pedro podia entreter-se por um instante que fosse com o mistério contido naquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, muitas coisas lhe vinham à cabeça de menino pequeno.
O primeiro pensamento era endereçado ao objeto cueca. Por que a cueca, e não a calça, a camisa ou as meias?, Pedro se perguntava. Bem verdade que para tirar a cueca era preciso primeiro tirar a calça, ainda curta naquela época. A calça não servia, a mãe enfatizava que era preciso pisar na cueca, e não na camisa, na calça ou nas meias.
O ato de pisar: eis o segundo elemento a ser considerado por Pedro em suas divagações infantis. Não bastava apenas tirar a cueca, jogar ela num canto qualquer, no cesto de roupa suja, botar ela pra lavar, esperar secar, vestir novamente, ou até mesmo escolher uma outra cueca, limpa naturalmente, não, era preciso tirar e pisar na cueca. Pisar pisar pisar pisar pisar, aquilo martelava na cabeça de Pedro.
Será que a raiva vai se escoar pelos meus pés ao pisarem a cueca?, pensava Pedro, que de fato não pensava a palavra escoar, demasiado erudita para sua idade, pensava Será que a raiva vai sair pelos meus pés?, pois pensava com as palavras de que dispunha naquela época de menino pequeno, mas, sem qualquer sombra de dúvida, ele aprendia a pensar. Se a raiva vai sair desse modo, pelos meus pés, por que não pode sair em cima da camisa, da calça ou das meias?, por que tem que ser sobre a cueca?, pensava Pedro.
Merda! Pedro ouvira a mãe pronunciar esta palavra algumas vezes, em situações parecidas com a que ele vivia quando ela recomendava Tira a cueca e pisa em cima! Por que ela então não tirava a calcinha e pisava em cima? Mas calcinha não é cueca. Talvez por isso gritar Merda fosse o equivalente de Tira a cueca e pisa em cima para uma mulher adulta que estivesse sofrendo de um ataque de cólera, pensava Pedro. Merda merda merda merda merda, agora uma outra palavra martelava na cabeça de Pedro.
Alguma possível relação entre cueca e merda?
Bem, o que era mesmo que despertava em Pedro tamanho ódio? O menino pequeno ao se entreter com tais pensamentos esquecia-se da raiva, e a mãe, sem o saber, desmoralizava o sintoma.
Psicanálise e o processo criativo
Dois gênios da literatura - por quem nutro sentimento de quase veneração -, o mesmo ponto de vista sobre a psicanálise, exposto de forma enfática e definitiva, e a minha mais profunda discordância deles, nesse aspecto. Quem sou eu para discordar destes gigantes?, é a interrogação que de imediato me vem à mente. Mas outras ideias afloram em seguida, outras possibilidades, resultado não de conhecimento teórico ou de leituras e especulações filosóficas, e sim de aprendizado adquirido a partir da experiência pessoal de ser analisado.
Gosto de pensar que aquilo que o processo de análise pode nos proporcionar de melhor é uma vida mais confortável. Podemos supor que o escritor retire de seu mais profundo desconforto perante a vida a matéria bruta para sua escrita criativa. Remover, portanto, este desconforto seria o mesmo que secar a fonte da criatividade? Tal receio, por hipótese (mesmo que de origem inconsciente), não pode ser afastado; esta ideia há muito tem sido ventilada por analistas e não analistas, ao discutirem a conveniência ou não conveniência de escritores criativos, ou artistas de um modo geral, submeterem-se à psicanálise.
Eis a questão apresentada de outra maneira: é preciso viver desconfortavelmente para que se possa manter vivo o processo criativo? (A esta altura, o leitor há de ter percebido que evito as palavras “felicidade” e “infelicidade”, demasiadamente gastas para exprimir certos estados de espírito, substituindo-as por “conforto” e “desconforto”, estas mais modestas, mais comedidas, mais realistas.) Este é o preço que se tem de pagar para preservar a capacidade criativa? Não será um preço alto demais? Bem, cada um sabe de si, do ônus e do bônus, dos custos e dos benefícios.
No entanto, podemos perguntar ainda: se removido, pelo menos em parte, o desconforto de que estamos tratando, por intermédio de uma análise bem sucedida, será possível manter e até mesmo desenvolver, aprimorar mesmo, a capacidade de criar? Por que não? De que tem medo o escritor criativo? De que tem medo até mesmo o analista que se deixa contaminar por tais idéias? O que haveria de tão poderoso na psicanálise que poderia apagar o que de melhor tem uma pessoa? De fato, há aqueles que pensam que não vale a pena correr riscos, como se o risco de algo melhor também não fosse uma possibilidade. Risco, para eles, significa sempre e apenas o pior, o negativo, a ameaça, o perigo de morte. É verdade que corremos riscos desde que nascemos. Nossas mães não nos deixaram aprisionados em um quarto escuro para que não corrêssemos qualquer tipo de perigo. Pois, em um sentido mais amplo no modo de pensar a vida, risco apresenta também a possibilidade de uma experiência nova, criativa, positiva, que proporcione crescimento psíquico, algo, portanto, inerente ao processo de se estar vivo.
Não faltam exemplos como o de Georges Bataille (1897-1962), que de aspirante a escritor passou à condição de autor consagrado, após ter sido aconselhado por seu analista a registrar suas fantasias sexuais e obsessões de infância. Ao se referir ao papel libertador da análise, Bataille afirma: “O primeiro livro que escrevi só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” (História do olho, Cosac & Naify, 2003).
Não penso que esta seja uma visão exageradamente otimista, mas a ótica de quem deseja viver plenamente suas possibilidades e desenvolver seu potencial como ser humano. Uma análise bem sucedida pode nos proporcionar tal experiência, e com ela o risco de vivermos mais confortavelmente, sem perdermos nossa capacidade de criar. A existência de incontáveis psicanalistas bons escritores, sobretudo aqueles que se dedicam à escrita ficcional, pode ser considerada uma evidência do que aqui exponho.
Pura ficção: que tal pensarmos Kafka e Saramago, ainda vivos, mais felizes e de bem com a vida, e escrevendo ainda melhor! Para nosso deleite, é claro.
Improbabilidade
Dublê de corpo
Nanda viu-se envolvida nos braços de Raul; um Raul impetuoso que esfregava avidamente o corpo contra o dela, num tsunami voluptuoso que causou estranhamento na mulher. O quarto na completa obscuridade fez com que Nanda cismasse ainda mais com o comportamento do marido. Parecia outro, um outro homem ávido de tê-la, penetrá-la com aquele pinto duro feito uma rocha. Nanda sentiu-se ameaçada por tanta luxúria.
Raul, ou quem quer que ali estavesse, abria as pernas de Nanda com a fúria de um desmatador de florestas: o pau à frente, pressionando a junção de suas coxas. Nanda abriu-se e deixou-se levar. Raul gozou. Nanda deu um longo gemido e, por instantes, abandonou os pensamentos desconfiados. Adormeceram.
Café da manhã, no dia seguinte.
Nanda: – Gostei de ontem! O menino tava entusiasmado, não
Raul: – Éééé.
Nanda: – Até me passou pela cabeça que não era comigo que você tava transando...
Raul: – Ahhh.
Nanda (levando cada vez mais a sério sua desconfiança): – Isso é uma sacanagem! Fico muito decepcionada com você. Onde já se viu transar comigo pensando em outra pessoa!
Raul: – Nãooo!
Nanda, despedindo-se e já saindo para o trabalho: – Que falta de respeito! Fico puta da vida com essa falta de caráter!
E mal ouviu o comentário final de Raul: – Ãããã? Você se substima, Nanda...
Roque Tadeu Gui
Aprender a votar
Cenas de um romance familiar
O pai resolveu ensinar a Pedro e Paulo o que significava uma eleição, pois era tempo de eleição. Falava-se muito em Adhemar de Barros e seu retumbante lema de campanha: Rouba Mas Faz! Na esperança de que os filhos tivessem melhores opções quando crescessem, o pai pensou ensiná-los a votar. (Mal sabia ele que, tempos depois, até mesmo o bordão adhemarista seria motivo de plágio...)
Prepararam as cédulas, cada qual com o nome de um dos candidatos; ergueram a cabine de votação com a devida privacidade - o voto seria secreto, motivo de grande excitação entre os meninos; construíram urna de papelão com a indispensável fenda por onde seriam introduzidas as cédulas; a urna foi lacrada, o que deixava subentendida a possibilidade de fraude, a ser evitada a todo custo. A votação transcorreria no próximo domingo.
Nos dias que antecederam o pleito (palavra que não chegou a ser empregada por razões óbvias) só se falou de eleição. Às refeições, momento sagrado para a família, o almoço fumegante servido pontualmente às onze horas e o jantar às seis e meia, o pai pregava sobre as desejáveis virtudes de um candidato, falava de Ética - oportunidade imperdível para uma consulta ao Lello Universal -, explicava candidamente que fazer era obrigação do eleito e que não era correto roubar para governar - visto está, não era adhemarista -, alertava sobre a possível tentativa de compra de votos por parte de candidatos inescrupulosos. Mas o pai gostava mesmo era de discorrer demoradamente sobre o significado da palavra corrupção, aquilo que ele chamava de “degradação aviltante dos costumes”, e que ainda poderia levar o país a grandes dificuldades sociais e econômicas. (Mal sabia ele...) Paulo, inteligente e curioso, depois que recebera escancarados elogios de Dona Santa, a professora de latim, agora queria saber a origem das palavras e perguntou se corrupção vinha do latim e o pai respondeu que sim: corruptio, corruptionis, era a etimologia da palavra, e foi preciso voltar ao Lello para entender o que era etimologia.
O grande dia chegou, e o pai não deixou por menos: pregou sobre a importância da lei seca, o que não impressionou nem a Pedro nem a Paulo, ainda abstêmios. (Mal sabiam eles...) Logo pela manhã foram à urna, e os três votantes cumpriram rapidamente com suas obrigações cívicas.
Em seguida, passaram à apuração. A urna foi aberta solenemente. Ao pronunciar-se o nome do primeiro voto apurado -Adhemar de Barros - Pedro deu um pulo de alegria, foi tomado por louca euforia, havia ganho a eleição; foi ele quem venceu?, ou foi Adhemar o vencedor?; a confusão tomou conta do menino; Pedro delirou, embora não soubesse o que era delirar, mas delirou, pirou, ensandeceu de alegria, havia finalmente ganho alguma coisa, e não era qualquer coisa, era uma Eleição!
Para surpresa de Pedro a apuração continuou. Abriu-se o segundo voto: para o outro candidato; abriu-se o terceiro voto: também para o outro candidato. Encerrada a apuração: por dois votos a um, ganhou o outro candidato, decretou o pai, definitivamente.
Pedro, profundamente desapontado, tristíssimo, inconsolável, aprendeu o que era uma eleição. Apenas não encontrou melhores opções ao longo da vida...