Cenas de um romance familiar
Pedro, menino pequeno, sofria de acessos de cólera. Ao perceber no filho tais sentimentos, Otília, a mãe, disparava incontinente as palavras Está com raiva?, tira a cueca e pisa em cima!
Aquilo infalivelmente aumentava a raiva de Pedro, momentaneamente, mas tão logo, calmamente, ele conseguia reorganizar seus infantis pensamentos e especular sobre o possível significado daquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, quando Pedro podia entreter-se por um instante que fosse com o mistério contido naquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, muitas coisas lhe vinham à cabeça de menino pequeno.
O primeiro pensamento era endereçado ao objeto cueca. Por que a cueca, e não a calça, a camisa ou as meias?, Pedro se perguntava. Bem verdade que para tirar a cueca era preciso primeiro tirar a calça, ainda curta naquela época. A calça não servia, a mãe enfatizava que era preciso pisar na cueca, e não na camisa, na calça ou nas meias.
O ato de pisar: eis o segundo elemento a ser considerado por Pedro em suas divagações infantis. Não bastava apenas tirar a cueca, jogar ela num canto qualquer, no cesto de roupa suja, botar ela pra lavar, esperar secar, vestir novamente, ou até mesmo escolher uma outra cueca, limpa naturalmente, não, era preciso tirar e pisar na cueca. Pisar pisar pisar pisar pisar, aquilo martelava na cabeça de Pedro.
Será que a raiva vai se escoar pelos meus pés ao pisarem a cueca?, pensava Pedro, que de fato não pensava a palavra escoar, demasiado erudita para sua idade, pensava Será que a raiva vai sair pelos meus pés?, pois pensava com as palavras de que dispunha naquela época de menino pequeno, mas, sem qualquer sombra de dúvida, ele aprendia a pensar. Se a raiva vai sair desse modo, pelos meus pés, por que não pode sair em cima da camisa, da calça ou das meias?, por que tem que ser sobre a cueca?, pensava Pedro.
Merda! Pedro ouvira a mãe pronunciar esta palavra algumas vezes, em situações parecidas com a que ele vivia quando ela recomendava Tira a cueca e pisa em cima! Por que ela então não tirava a calcinha e pisava em cima? Mas calcinha não é cueca. Talvez por isso gritar Merda fosse o equivalente de Tira a cueca e pisa em cima para uma mulher adulta que estivesse sofrendo de um ataque de cólera, pensava Pedro. Merda merda merda merda merda, agora uma outra palavra martelava na cabeça de Pedro.
Alguma possível relação entre cueca e merda?
Bem, o que era mesmo que despertava em Pedro tamanho ódio? O menino pequeno ao se entreter com tais pensamentos esquecia-se da raiva, e a mãe, sem o saber, desmoralizava o sintoma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário