A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Telefone

Num encontro de acasos, os novos amigos se descobriram. Ela sempre atrasada, ele sempre a esperava. A mulher-sem-tempo se eternizava na infinitude-de-dias-e-noites que amargava o homem. Ele andava de malas prontas, desgostoso da vida e das pessoas, mas se divertia com a ingenuidade da mulher que vivia a desfazer bagagens e queixar-se da pressa do mundo.
Trinta minutos era o tempo que lhes foi reservado quando se dera o anúncio do juízo final. A primeira pergunta, ele a disparou sem piedade: o que você faz com as relações? Atônita, balbuciou: o possível. Mas aquela era a resposta dele à pergunta por ela devolvida! Deixara os velhos amigos a entreter-se com os livros que não podiam ler e esperar pelo alívio de sua companhia que já não cedia, rendido à dor e ao isolamento.
A mulher angustiada quebrava a amargura muda desse homem. E feito luz da tarde se infiltrando entre folhagens densas num jardim solitário, a alma do homem abria-se suavemente e iluminava o rosto daquela mulher, com a doçura e vivacidade que só se pode receber dos mais generosos amigos.
Naquela metade de hora de prosa aleatória, ninguém mais sabia o que era excesso ou escassez. Era apenas tempo sem medidas. Abusada, a mulher antecipou-se a encerrar seu falatório para não ser interrompida pelo cansaço e esgotamento do homem, pois até os amigos se cansam. Consegui te manter por meia hora ao telefone, uma glória, provocou triunfante a amiga. O homem, como era sábio e generoso, apenas sorriu. O silêncio que se seguiu encorajou os sentimentos da mulher. Precioso tempo, ela sussurrou, estar com você durante esses poucos eternos minutos. Tal como o pôr-do-sol, quando se olha novamente já se foi, mas não se esquece sua imagem. E assim, antes que ele partisse, ela pode dele ouvir, amo você.

Cláudia Carneiro

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A verdade possível

– Acho que Raul escapa da terapia, Teo! – diz Vera, com um franzido das sobrancelhas escuras, grossas e bem delineadas, acompanhado pelo sorriso irônico, muito familar ao velho analista.

– Sei, você desconfia que ele não fala das coisas verdadeiramente importantes. E, então, ele não faz terapia direito, do jeito que deveria ser – responde o Dr. Teodoclus, ou simplesmente Teo, como seus pacientes preferem chamá-lo, dispensando o título que herdou da faculdade de medicina.

– É, Teo. O Raul engana. Não sei se apenas o terapeuta, ou também a ele mesmo. Acho que quando o bicho pega ele escapa... Eu queria te perguntar uma coisa. Sei que você não faz terapia de casal, não é? Mas, você não acha que é interessante? Numa terapia de casal o que um diz pode ser confrontado pelo outro... Assim, não tem muito para onde fugir: se o cara diz isso ou aquilo, o outro pode dizer “não, não foi assim e coisa e tal...”. Pão-pão, queijo-queijo!

Lá vem vera de novo – pensou Teo – com o seu desejo de controle, de confronto, de não deixar o marido escapar da terapia - aliás, o marido fazer terapia foi a condição sine qua non para que ela concordasse em continuar no casamento: – Você gostaria de encurralar o Raul num canto da parede e não deixar espaço para ele fugir, não é? – disse o analista, pensando no estranho verbo que acabara de usar: “encurralado”, algo como estar no curral, cercado, controlado. Fazia sentido, diante da atitude recorrente de Vera no que dizia respeito a não dar espaço para que Raul se movimentasse na relação conturbada do casamento e, agora, até mesmo na terapia do marido.

– O velho lance do controle, não? – completou o analista.

Vera, endireitando-se na poltrona e exibindo novamente o sorriso irônico, sua marca registrada: – É, Teo. Eu não sou psicóloga, não entendo muito disso, mas um dia eu gostaria de inventar uma terapia que não deixasse o terapeuta apenas com a verdade do paciente. (Aí está novamente, pensou Teo, a pequena inventora imaginando uma maneira de impedir que o terapeuta seja enganado pelo paciente. Vera vivia pensando em geringonças e tudo quanto é tipo de dispositivo que, segundo ela, poderia tornar a vida mais previsível, mais controlável. Mas, essa história do marido enganar o terapeuta... será que ela fala de si, cogitou Teo?)

– É, Vera. Mas qual é a verdade do Raul? A mesma que a sua?

Vera parece não ouvir a pergunta-comentário de Tom e continua: – O cara pode enganar o terapeuta... Eu venho aqui, digo tudo, não fico escondendo. Estou aqui para isso. Agora, Raul certamente não fala... Só para testá-lo, perguntei se ele havia falado com o Dr. Carlos sobre a história da escritura. A tal história do direito de usufruto que ele registrou para a ex-mulher sobre o imóvel que ele doou meio-a-meio para a filha deles e para nosso filho. Perguntei, e ele respondeu: – Não falei não! Prá que falar? – Vera repete as palavras ditas pelo marido fazendo as caretas que ele teria feito, um misto de arrogância e desprezo, e continua: – Taí, o circo tá pegando fogo e ele diz que não vale a pena falar do incêndio... Vai por mim, Teo, Raul escapa! – exalta-se.

– Mas, parece que a situação chegou a bom termo, não? – Teo pondera, tentando apontar para uma atitude não-escapista de Raul – Você disse que Raul compreendeu sua raiva diante do episódio da escritura, não? Parece que foi importante você ter dito a ele sobre seus sentimentos de traição e menos-valia. E parece que ele foi capaz de reparar a confusão que ele mesmo aprontou, não?

– É, Teo... – diz Vera, quase balbuciando e agora um pouco mais tranquila – De fato, nossa conversa sobre o acerto foi no dia em que ele teve sessão com o Dr. Carlos... Mas, ainda acho que precisamos descobrir uma maneira de não deixar o terapeuta tão vendido à verdade do paciente! – retoma Vera, inconformada.

– Vera, você não acha que o analista e o paciente buscam juntos uma verdade que nem um nem o outro conhece? Como acontece aqui entre nós dois. O quê mais poderiamos fazer? – dando ênfase retórica à pergunta.

– Mas, Teo, pense por um momento. Não seria fantástico, Teo... saber a Verdade?

– Vera, só podemos buscar a verdade juntos... a verdade... aquela que for possível.

Roque Tadeu Gui

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Horizonte

Nasceu uma menina, derradeira na dúzia de filhos do velho e cansado homem; este não mais se interessava pelo novo mundo, sentava-se no alpendre da casa, o olhar perdia-se no horizonte, nem notava quando, sozinha e largada, a menina crescida ajeitava-se ao seu lado e silenciava o olhar na mesma direção, quem sabe o encontraria no infinito. Morreu o pai, sem nunca desviar o olhar da própria tristeza.

Cláudia Carneiro

domingo, 15 de novembro de 2009

O bigode do meu pai

Não recebi amor de minha mãe. Ela era uma mulher dura e dizia o que pensava, sem titubear.
Lembro da ocasião em que resolvi participar de um concurso de poesia organizado por uma emissora de rádio da minha cidade. Devia ter uns 12 anos. Os candidatos apresentavam suas poesias no programa que era transmitido ao vivo e uma banca de jurados avaliava a produção da garotada. Fui pré-selecionado e no dia do programa lá estava eu. A banca era constituída por três jurados e, como é de praxe nesses concursos – só que eu naquela época não sabia disso – dois dos juízes elogiavam enquanto que o terceiro destruía tudo o que os outros haviam dito: a conhecida estratégia “dois mocinhos e um bandido” que garantia a cota de emoções para os ouvintes.
Bom, aconteceu comigo. Depois de alguns elogios dos “mocinhos”, foi a vez do “bandido”. O cara disse tanta merda, mas tanta, que eu queria sumir; saí dali tonto, sem rumo. O auditório da pequena emissora ficava a alguns quarteirões de minha casa e não sei como consegui voltar sozinho. Minha precoce vocação literária acabava de ser enterrada naquele funesto concurso.
Cheguei em casa e fui direto para meu quarto; lá fiquei, horas intermináveis de absoluta incompreensão sobre o que havia ocorrido. Até então, eu achava que escrevia direitinho; era elogiado na escola, os professores me incentivavam quando eu apresentava as redações e até mesmo meus pequenos poemas. Tinham me convencido de que eu sabia fazer algo de razoável valor; foi por isso que me aventurei na empreitada daquele maldito concurso. Minha ingenuidade infantil não contava com a desgraça que se abateria sobre meu incerto talento, dando fim prematuro ao meu percurso literário. Pois foi o que aconteceu ali naquele auditório, diante de todos que puderam testemunhar o sepultamento de minhas pretensões infantis de ser um poeta.
Passei um dia sem comer trancado no quarto. Parecia que somente a mim a desgraça havia atingido; toda a vida fora daquele quarto continuava como se a ordem do universo não tivesse se alterado com o desastre que acometera minha vida. Ao final do dia seguinte, vencido pela fome, saí do meu vergonhoso refúgio, sem coragem de enfrentar a vida e o mundo hostil com o qual havia me deparado de maneira tão abrupta e brutal.
Chorando, aproximei-me de minha mãe. Ela segurou-me pelos ombros, olhou no fundo dos meus olhos, sacudiu-me várias vezes e disse: “Deixa de ser molenga, menino! Vamos, reage...”. Fui novamente surpreendido, desta vez por uma trombada – parecida com aquelas que eu criava para minhas miniaturas de automóveis – com uma verdade que me pareceu insofismável: a exigência de ser forte, de não me render às vicissitudes da vida. Com aqueles chaqualhões, dei-me conta de que a vida não é para molenga, filhinho da mamãe que chora porque não gostam de sua poesia. Foi assim, de súbito, e de uma só vez, que aprendi que o segredo era descobrir em que é que eu era bom, desfazendo-me das ilusões e das tentativas de ser o que eu ainda não sabia se poderia ser. A partir de então, andaria com cautela e apenas pelos caminhos dos quais tivesse certeza de conhecer as paisagens. Mamãe era assim: dura, incontornável, e não dava guarida a fraquezas de um menino fraco.
O amor que não tive de minha mãe recebi de meu pai. Ah! Que homem gentil! A lembrança mais doce que guardo comigo é a do roçar de seu bigode em minha barriga. Ele chegava – eu, deitado na cama ¬–, fazia cara de monstro aterrador, do jeito que as crianças temem mas tanto gostam, e que eu sabia ser pura dramaturgia, avançava sobre mim, levantava minha camiseta, fazia “bruuuu” com a boca em minha barriga e, balançando a cabeça, esfregava seu bigode em minha pele. Essa brincadeira que, para meu deleite, se repetia com frequência, era a demonstração cabal do seu amor por mim: pura poesia, aquela que eu já sabia ser incapaz de criar mas que tinha ali, generosa e graciosamente oferecida por meu querido pai.
Pois é, meu pai era assim... Acho que naquela época comecei a entender porque ele não era feliz com minha mãe.

Roque Tadeu Gui

Sobre joões-de-barro e sabiás

Uma coisa da qual não gosto é a de ser acordado pelo João-de-Barro. Êta pássaro enjoado! Logo cedo, faz um barulhaço; além de ser madrugador – o que todos os passáros são – parece que tem preferência por se acasalar de manhazinha, com os primeiros raios de sol, sei lá... faz uma confusão! Prefiro os sabiás! Ah, os sabiás entoam uma melodia celestial, uma verdadeira música dos anjos.

Pois é. Tive um sonho na noite passada. Não sei se já te falei sobre uma amiguinha que tive aos seis ou sete anos de idade. Ela era pequenina como eu, usava uma calcinha cor-de-rosa com babadinhos... Nessa época eu ganhei um velocípede, aprendi a andar e levava a menina na garupa, para cima e para baixo. Aonde eu ia levava minha companheira. Eu falava muito com ela, mas falava sozinho porque ela nada dizia; acho que ela era muito pequena. Ah, eu ainda não disse, mas ela era uma garota imaginária!

Bom, parece que essa garotinha cresceu e virou uma balzaquiana. Resolveu aparecer em meu sonho de ontem à noite. Uma mulher madura, interessante, bonita, sensual. Passamos a noite juntos, quero dizer, juntos no meu sonho. Saíamos para caminhar, conversávamos longamente, podia falar com ela sobre os assuntos que me interessam, minhas preocupações. Sentia-me... recompensado. Palavra estranha essa, não? Quero dizer, ela dava retorno às coisas que eu dizia. E eu sentia que recebia algo de volta, que minha fala não era em vão. Agora, me vem a palavra reciprocidade... Senti-me como a muito tempo não me sentia: leve, vivo e feliz! O ar era carregado de energia sexual, embora não houvesse imagens sexuais. Muito diferente de minha vida com Maria Luiza...

O sonho rolou até de manhazinha. Preferia não ter acordado, de tão bom que estava o sonho. Mas acordei. Com o canto do sabiá! Passei o dia leve, pensando nas mulheres que fizeram parte de minha vida.

Roque Tadeu Gui

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ana e Cíntia

Naquela manhã de sábado, pensei em fazer algumas fotos do centro da cidade para testar a canon D40 que acabara de ganhar de meu filho. Peguei o metrô na estação Consolação em direção ao Paraíso onde faria a troca de linha e seguiria para a Sé. Meus pensamentos sobre a pontualidade e regularidade daquele meio de transporte, mesmo num sábado de manhã, foram interrompidos pelo carro que parou na plataforma à minha frente.
Bancos todos ocupados, amparei-me no guarda-corpo próximo a uma das portas. Foi quando notei Ana e Cíntia. Meu olhar encontrou primeiro Cíntia. Há cerca de um metro de mim, encostava-se na parede do vagão, logo ao lado da porta. Algo em sua aparência me confundiu: seus cabelos escuros, lisos e brilhantes, discretamente amarrados em rabo-de-cavalo, alguns fios soltos sobre a orelha e a testa, denotavam uma delicada cabeça feminina, os olhos – não os podia ver, ocultos por óculos escuros largos – cobriam-lhe boa parte da face, os lábios, sem sinal de batom, de um rosa pálido.
De pequena estatura, Cíntia vestia uma calça jeans escura e uma blusa preta de gola rolê com mangas compridas até o meio da palma da mão: corpo quase todo coberto. Encostada na parede, pernas esticadas, pés calçados por um all-stars e plantados no assoalho do vagão, como os garotos preferem fazer. Chamou-me a atenção a ausência de volumes corpóreos: seios imperceptíveis sob a grossa blusa, coxas retas, nenhuma saliência ventral: um corpo magro e liso. Em um relance poderia ser facilmente confundida com um menino.
Em ângulo com Cíntia, avistei Ana. Perna esquerda avançada em direção ao corpo recostado de Cíntia, braço esquerdo esticado segurando-se no guarda-corpo que compartilhávamos e o outro apoiado na parede do vagão. Sua posição cercava e ao mesmo tempo protegia a pequena Cíntia.
Aparentando ser alguns anos mais velha do que Cíntia, Ana parecia ser uma mulher madura; um pouco mais alta, cabelos igualmente pretos, não tão lisos e um pouco mais curtos, um toque avermelhado nos lábios, rosto arredondado, todo seu corpo era mais roliço, denunciando curvas e formas femininas. Também usava calça e blusa pretas. A roupa, no entanto, diferentemente de Cíntia, não ocultava; antes, realçava-lhe a silhueta, a blusa com generoso decote mostrava os contornos dos seios. Nenhum óculos escondiam-lhe os olhos que apresentavam uma expressão suave.
Continuei observando-as, pensando tratar-se, até esse momento, de duas amigas. Cheguei à estação Paraíso e concentrei-me em transferir-me para a linha azul que me levaria à Sé. Entrei no vagão e sentei-me no primeiro assento disponível; coincidentemente, ali estavam Ana e Cíntia, novamente alojadas no guarda-corpo próximo à porta e diante de mim.
Percebi agora um gesto carinhoso de Cíntia para Ana. Apenas um toque suave no peito da amiga respondido por um singelo sorriso. Cíntia parecia antecipar a separação que ocorreria minutos após o gesto carinhoso: encostou a cabeça no ombro de Ana e novamente sorriu. Ana passou-lhe a mão sobre o cabelo e sussurrou algo que não consegui ouvir. Quisera sacar da máquina fotográfica que trazia a tiracolo e fotografar o toque sutil, terno e discreto de Cíntia no peito de Ana; mais do que isso, quisera fotografar a aura daquele afeto transbordante flagrado sorrateiramente por mim. Senti-me como um ladrão que surrupia um momento íntimo de duas mulheres mas, a despeito da vergonha, persisti em meu olhar transgressor e obsceno.
Idéias passavam-me pela cabeça: Ana e Cíntia seriam amantes? Amigas, tão somente? Mãe e filha, apesar da pouca diferença de idade? Mãe e filho, a propósito de minha fantasia, agora descartada, de que Cíntia poderia se passar por um jovem? Ana, a mulher-que-contem e Cíntia, a criança-que-é-contida? Cada uma dessas imagens tocavam-me inevitavelmente, pois ali estava eu, transgressor, implicado em cada gesto, em cada imagem de ternura captada, em cada toque das mãos delicadas das duas mulheres, eu, observador tão inofensivo protegido pela discrição do olhar curioso. Nostálgico diante de uma manifestação de afeto em cena aberta.
O autofalante arrancou-me do devaneio, anunciando a próxima estação: Liberdade. Ana, mais uma vez, acariciou os cabelos de Cíntia e pela primeira vez pude entender suas palavras, numa leitura labial quase improvável. Penso ter vistouvido: “Já vou...”. A porta se abriu e Ana sumiu na multidão que se apinhava à entrada do vagão. Cíntia aproveitou um banco que vagara bem à minha frente e pude olhá-la por mais alguns minutos antes que chegasse a minha vez de desembarcar. Tirou os óculos escuros e então vi seus olhos sombreados por duas intensas olheiras. Coisa de quem passara a noite em claro. Teriam vindo, as duas amigas, da balada da noite de sexta-feira e ali se despedido? Teriam passado a noite entre os atos de amor e as discussões tão frequentes entre os amantes? Um tom soturno abateu-lhe ainda mais o semblante, algo indecifrável, doído, meio que sem esperança. Um ar de despedida e de um não saber até quando.

Roque Tadeu Gui