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sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A verdade possível

– Acho que Raul escapa da terapia, Teo! – diz Vera, com um franzido das sobrancelhas escuras, grossas e bem delineadas, acompanhado pelo sorriso irônico, muito familar ao velho analista.

– Sei, você desconfia que ele não fala das coisas verdadeiramente importantes. E, então, ele não faz terapia direito, do jeito que deveria ser – responde o Dr. Teodoclus, ou simplesmente Teo, como seus pacientes preferem chamá-lo, dispensando o título que herdou da faculdade de medicina.

– É, Teo. O Raul engana. Não sei se apenas o terapeuta, ou também a ele mesmo. Acho que quando o bicho pega ele escapa... Eu queria te perguntar uma coisa. Sei que você não faz terapia de casal, não é? Mas, você não acha que é interessante? Numa terapia de casal o que um diz pode ser confrontado pelo outro... Assim, não tem muito para onde fugir: se o cara diz isso ou aquilo, o outro pode dizer “não, não foi assim e coisa e tal...”. Pão-pão, queijo-queijo!

Lá vem vera de novo – pensou Teo – com o seu desejo de controle, de confronto, de não deixar o marido escapar da terapia - aliás, o marido fazer terapia foi a condição sine qua non para que ela concordasse em continuar no casamento: – Você gostaria de encurralar o Raul num canto da parede e não deixar espaço para ele fugir, não é? – disse o analista, pensando no estranho verbo que acabara de usar: “encurralado”, algo como estar no curral, cercado, controlado. Fazia sentido, diante da atitude recorrente de Vera no que dizia respeito a não dar espaço para que Raul se movimentasse na relação conturbada do casamento e, agora, até mesmo na terapia do marido.

– O velho lance do controle, não? – completou o analista.

Vera, endireitando-se na poltrona e exibindo novamente o sorriso irônico, sua marca registrada: – É, Teo. Eu não sou psicóloga, não entendo muito disso, mas um dia eu gostaria de inventar uma terapia que não deixasse o terapeuta apenas com a verdade do paciente. (Aí está novamente, pensou Teo, a pequena inventora imaginando uma maneira de impedir que o terapeuta seja enganado pelo paciente. Vera vivia pensando em geringonças e tudo quanto é tipo de dispositivo que, segundo ela, poderia tornar a vida mais previsível, mais controlável. Mas, essa história do marido enganar o terapeuta... será que ela fala de si, cogitou Teo?)

– É, Vera. Mas qual é a verdade do Raul? A mesma que a sua?

Vera parece não ouvir a pergunta-comentário de Tom e continua: – O cara pode enganar o terapeuta... Eu venho aqui, digo tudo, não fico escondendo. Estou aqui para isso. Agora, Raul certamente não fala... Só para testá-lo, perguntei se ele havia falado com o Dr. Carlos sobre a história da escritura. A tal história do direito de usufruto que ele registrou para a ex-mulher sobre o imóvel que ele doou meio-a-meio para a filha deles e para nosso filho. Perguntei, e ele respondeu: – Não falei não! Prá que falar? – Vera repete as palavras ditas pelo marido fazendo as caretas que ele teria feito, um misto de arrogância e desprezo, e continua: – Taí, o circo tá pegando fogo e ele diz que não vale a pena falar do incêndio... Vai por mim, Teo, Raul escapa! – exalta-se.

– Mas, parece que a situação chegou a bom termo, não? – Teo pondera, tentando apontar para uma atitude não-escapista de Raul – Você disse que Raul compreendeu sua raiva diante do episódio da escritura, não? Parece que foi importante você ter dito a ele sobre seus sentimentos de traição e menos-valia. E parece que ele foi capaz de reparar a confusão que ele mesmo aprontou, não?

– É, Teo... – diz Vera, quase balbuciando e agora um pouco mais tranquila – De fato, nossa conversa sobre o acerto foi no dia em que ele teve sessão com o Dr. Carlos... Mas, ainda acho que precisamos descobrir uma maneira de não deixar o terapeuta tão vendido à verdade do paciente! – retoma Vera, inconformada.

– Vera, você não acha que o analista e o paciente buscam juntos uma verdade que nem um nem o outro conhece? Como acontece aqui entre nós dois. O quê mais poderiamos fazer? – dando ênfase retórica à pergunta.

– Mas, Teo, pense por um momento. Não seria fantástico, Teo... saber a Verdade?

– Vera, só podemos buscar a verdade juntos... a verdade... aquela que for possível.

Roque Tadeu Gui

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