-- E se o pai não gostar?
-- Nem pensar. Vamos seguir nosso plano que tudo vai dar certo.
-- Mas se ele não gostar?...
-- Você deixa que eu falo, você apenas concorda comigo, precisa concordar, fica do meu lado, balança a cabeça para mostrar que pensa como eu, tá bom?
-- Tá.
-- Será amanhã cedo, à hora de sempre, pouco antes do café.
-- Eu sei.
-- Então, combinado.
O diálogo entre os dois meninos foi mais ou menos assim. O mais velho, com 5 anos, o mais novo com 4, Pedro e Paulo os seus nomes. Diante de uma situação calamitosa, insuportável de uns tempos para cá, ambos resolveram tomar uma atitude: não tomar mais a colherada do óleo-de-fígado-de-bacalhau que o pai teimava em administrar a cada manhã, sem folga nem mesmo aos domingos, dias santos ou feriados. Quando o pai abria o vidro da tisana, só com o cheiro, o estômago se contorcia na barriga; o gosto então, nem se fala: peixe, peixe podre, podre desde sempre, nasceu podre aquele peixe; e era preciso engolir, a simples ameaça de vômito bastava para provocar a ira do pai:
-- Engole isso, menino, não seja enjoado!
E os meninos ouviam naquele enfático enjoado um sinônimo de mariquinha, mulherzinha, que ainda não sabiam bem o significado de veadinho, apenas suspeitavam... E engoliam a beberagem, dia após dia, num incompreensível martírio. Tinham idade e entendimento suficientes--- eram inteligentes -- para perceber que o pai estava cheio de boas intenções, que desejava vê-los crescerem fortes e sadios, e que afinal tinham um bom pai, carinhoso, embora um tanto severo. Mas aquilo estava passando dos limites: uma verdadeira tortura, que ultimamente começava na véspera, quando iam para a cama:
-- Pedro, será que amanhã vai ter o xarope?
-- Vai, Paulo.
-- Pois eu não aguento mais.
-- Nem eu. Estou com vontade de vomitar desde já!
-- Tive uma ideia, Pedro: e se a gente vomitar?
-- Paulo, tenho nojo de vômito, vomitar não dá. Depois, e aquele gosto que fica na boca!
No dia seguinte, pela manhã, o ritual nunca falhava:
-- Pedro Paulo, hora do fortificante!
E os dois irmãos, resignadamente, caminhavam para o cadafalso, pálidos, gelados, quase verdes, os estômagos saindo pela boca. Espartana educação. O pai acreditava mesmo no poder da Emulsão Scott, tanto que chegou a mostrar aos filhos a bula do remédio:
EMULSÃO SCOTT é preparado emulsionado com óleo de fígado de bacalhau, que proporciona rápida e completa assimilação de vitaminas para a prevenção e tratamento das doenças resultantes de deficiências das vitaminas A e D. EMULSÃO SCOTT é facilmente assimilável, mesmo pelos organismos mais delicados.
Fórmula e composição - EMULSÃO SCOTT
Por colher de
sobremesa (10 ml) de sopa (15 ml)
Óleo de fígado de bacalhau 0,588g 0,882g
Óleo de soja 2,060g 3.090g
Fosfato monossódico 0,022g 0,033g
Fosfato dicálcico 0,054g 0,081g
Hipofosfito de sódio 0,040g 0,060g
Óleos essenciais 0,014g 0,021 g
Veículos q.s.p. 10,000 ml 1 5,000 ml
Quando o pai leu organismos mais delicados, Pedro e Paulo tiveram certeza:
-- O pai acha que somos mariquinhas...
Até que um dia a coisa tornou-se mesmo insuportável. À noite, já deitados, Pedro apresentou seu plano infalível.
-- Paulo, tenho um plano.
(Agora, o leitor menos atento, se desejar, volta ao início da história e relê o diálogo entre os dois meninos, que antecede o epílogo desta história. “E se o pai não gostar?”, exclamou Paulo, o irmão mais novo.
Até que chegamos à manhã fatídica onde tiveram lugar os acontecimentos decisivos da nossa história.)
-- Pedro Paulo, hora do fortificante!
Seguiram-se intermináveis segundos de silêncio, após o que, Pedro, cheio-de-coragem-mas-nem-tanto, disparou:
-- Pai eu e o Paulo resolvemos que não vamos tomar mais esse negócio pai não aguentamos mais pai isso é ruim demais pai sentimos muita vontade de vomitar pai desde ontem à noite estamos com vontade de vomitar pai e resolvemos pai eu mais o Paulo pai não é Paulo? que não vamos mais tomar esse remédio pai porque isso é ruim demais pai não dá mesmo pai.
Findo o discurso do filho mais velho, o pai fechou em silêncio o vidro da Emulsão Scott -- óleo-de-fígado-de-bacalhau --, guardou o vidro em completo silêncio, e nunca mais se ouviu uma palavra sobre o assunto.
O pai então aprendeu, e Pedro e Paulo aprenderam a maior lição de suas vidas até então.
André Vianna
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