A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Encontro

Silvia terminava o banho imersa em pensamentos sobre o encontro daquela tarde, mais um entre tantos outros que já haviam ocorrido. Aquele, contudo, seria especial e prometia mudanças radicais no relacionamento com Teo.


Saiu do chuveiro e envolveu-se na toalha branca felpuda. Enxugou-se, acariciando a pele branca e suave que rescendia a aroma floral. Uma janela aberta permitiu que um vento frio atingisse seu corpo ainda quente e úmido. Açoitadas por uma descarga elétrica, as auréolas dos seus seios arrepiaram e os bicos endureceram. Como seria bom tê-los assim quando Teo ousasse descobri-los. Fechou a janela e continuou com os preparativos.


Olhou-se no espelho, notando o recente corte que deixara o cabelo mais curto, destacando ainda mais o negrume dos fios sedosos. Penteou-os apenas com os dedos, conforme fora recomendado pelo cabeleireiro. Ele tinha razão. O rosto ganhou expressão mais jovem e agressiva. Os lábios rosados mereciam um pouco de brilho: tratou de aplicar o batom incolor que acabara de comprar. Pensou em destacar os olhos com rimel, mas, achou exagerado e abandonou a ideia.


Olhou novamente para os seios, agora já refeitos do choque térmico. Gostou do que viu. Cheinhos. Não avantajados – mulheres de peitos grandes sempre lhe pareceram excessivamente maternais , exalavam o aroma da essência de banho misturado com o da mulher desejosa. Era assim que Silvia gostava de sentir-se. Um pouco maliciosa, um pouco puta.


Dirigiu-se à cômoda e abriu a gaveta de lingerie. Vejamos, o que escolher? Decidiu pelo conjunto rosa de sutiã e calcinha, feito de microfibra leve e transparente. Condiz com o tesão que sinto. Vestiu primeiro a peça de cima, acomodando suavemente os seios no côncavo do tecido suave. Segurando-os com a mão em concha, acariciou-os, gerando nova descarga elétrica. Eles responderão assim ao toque de Teo! Sacudiu a cabeça, voltando a si, a consciência roubada pelos devaneios e a excitação do próprio toque. Novamente, notou o cabelo discretamente despenteado. Ficou muito bom mesmo. Ah, Teo, me aguarde.


Vestiu a calcinha, puxando-a suavemente pelas pernas, bamboleando um pouco as coxas para acomodar a peça nos belos quadris. Olhou para os pelos pubianos que criavam um volume acolchoado sobre sua vulva. Alguns homens preferem as peludas, bocetas virgens não debastadas. Gostam de abrir caminho pelo matagal de pelos com suas barbas bem aparadas e ásperas. Um contraste deliciosamente sensual. Teo será um desses?


Olhou o visual no espelho: havia um corpo voluptuoso sutilmente visivel por trás da delicada lingerie. Enquanto Silvia, com a polpa dos dedos, ajeitava a fina barra da calcinha sobre suas coxas, um último retoque, os mamilos voltaram a endurecer. Por um instante, pensou em se tocar, adentrando com os dedos a selva pubiana, à procura de gozo, mas desistiu; atrasava-se para o encontro. Reservaria o privilégio para Teo.


Sobrepôs à toda sensualidade o curto vestido tubinho preto que abotoava nas costas. Teo tentaria desabotoá-lo, envolvendo-a nos braços, ou pediria que ela se virasse de costas para ele?Atarrachou displicentemente os pequenos brincos de pérola nas orelhas, completando-os com um discreto colar. Pronta, vestida para matar, brincou consigo mesma.


Chegou ao prédio de cinco andares, na ampla piazza comercial do centro da cidade. Como de costume, pegou o elevador, clicando o botão do quarto andar. Atravessou o corredor e parou diante do número 405. Sentia-se-molhada-entre-as-pernas. Antes de abrir a porta com a chave que lhe foi dada por Teo, procurou checar uma vez mais sua imagem na lâmina de bronze lustro fixado à entrada: Teodoclus Miranda, Psicanalista.


Uma última ajeitada no vestido, rodou a chave e entrou.


Deu na antessala, olhou para o relógio e constatou que estava adiantada três minutos; sequer sentou-se, olhando hipnotizada para a porta da sala de análise que abriu-se a seguir.


– Bom dia, Silvia.


– Bom dia, Teo – respondeu com o coração a sair pela boca, deitando-se de imediato no divã, na esperança de ali desaparecer. Segundos eternos para se recompor. Olhou para as coxas deixadas à mostra pelo tubinho preto, conforme premeditara em seus secretos devaneios. Sentiu-se pecaminosa. Cruzou as mãos sobre o ventre arfante e conseguiu murmurar:


– Teo, tive um sonho...


Roque Tadeu Gui


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Náufragos

De criança, fiz um pacto com Deus. E parece que Deus não recusa um acordo proposto por uma criança: Ele simplesmente o aceita, sabendo que um dia voltarão a conversar.

Foi assim comigo. Pedi que Ele me desse forças para enfrentar as dificuldades da vida, dificuldades com as quais eu sentia que meus pais não conseguiam lidar; eu haveria de ser capaz de cuidar de mim mesmo e dos que eu viesse a amar. Cultivaria valores nobres que iluminariam toda a minha vida, uma vida que seria de paz e serenidade.

Hoje, dou-me conta de estar perdido. E levei anos para constatar minha perdição.

Naquela época, quando conheci Maria Luiza, eu era um náufrago não sabido, que se agarrava a troncos de árvores que flutuavam nas águas obscuras e turbulentas de um mundo cheio de perigos e temores. Seria injusto acusar Maria Luiza de abandono e indiferença: ela apenas estava lá, disponível para ser salva, justamente por mim, um náufrago! Não é justo acusá-la. Meu naufrágio já vinha desde muito antes, desde quando procurei por Deus.

Maria Luiza, outra náufraga, nutria a estranha ideia de que sua vida se extinguiria com uma doença incurável. Nada do que fizesse poderia alterar o seu destino; portanto, nada fazia muito sentido, nem mesmo o curso universitário que ambos fazíamos. Caberia a mim convencê-la do contrário. Essa missão estava à altura de meu heroísmo e da unção conferida a mim pelo Santo Acordo: ela precisava ser salva e eu ansiava profundamente por salvá-la. Juntos, concluímos a Politécnica, ela amparada por mim, eu cumpridor de meu destino.

Sinto-me sobrecarregado, exaurido. Explorado, é uma palavra melhor! Maria Luiza não move uma palha, nunca se profissionalizou, diz que cumpriu com seu papel de mãe e de dona de casa. De mãe, vá lá, ela o fez, embora houvesse dias em que eu saía para trabalhar e ela com as meninas já adolescentes dormiam até o meio-dia; naquela casa a vida começava após o almoço – se é que aquilo podia ser chamado de almoço! – quando as crianças iam para a escola. E eu trabalhava duro o dia inteiro.

Tentei, inúmeras vezes, incentivá-la a conseguir um emprego, algo que a motivasse. Em vão! Em nossas discussões ela diz que eu somente sei cobrá-la e diminuí-la. Falhei no cumprimento de minha missão. Nenhum dos dois se salvou. Resta o cansaço: meu e dela.

Roque Tadeu Gui


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Irina Palm

Nanda não era do tipo “sexual”. Era assim que ela própria se descrevia, quando o assunto era sexo. Tinha dificuldades na cama com o marido: Raul era do tipo “sexual” e gostava de brincar com Nanda desavergonhadamente. Era típico dele:

– Nandinha (em tom de súplica infantil), pega no meu pau! E aí começava a via crucis de Nanda. Pensava: – Pôrra, que história é essa de “pega no meu pau”? Esse cara pensa o quê? Que sou marceneira: “pega no meu pau, na minha tora, na minha viga, no meu tarugo, na minha vara, no meu cacete” – desfiando o rosário de símiles usados pelo marido para designar o inoportuno caralho.

O linguajar de Raul chocava Nanda. Que amor era esse o do seu marido por aquele pau que valia para ele um dicionário de sinônimos. (Cá entre nós, leitor, o repertório de Nanda não ficava muito a dever ao linguajar erudito de Raul, pelo menos na retórica que ela usava em seus solilóquios: ela conhecia o inimigo por todos os seus nomes).

Mas, pegava. Relutantemente, pegava o pau de Raul. Talvez porque, no fundo, ficasse sensibilizada com o jeito de menino que o marido demonstrava nas coisas do sexo. Pegava como quem cumpre uma promessa à santa de devoção, por fé e por tradição. Mas, depois que pegava, vinha novamente Raul: – Isso, Nandinha, assim, assim... Bate uma uminha para mim... assim, assim...

– Pôrra, esse Raul não tem jeito! A gente dá o dedo e ele quer a mão, literalmente, a mão toda! Punheteiro, filho da puta! Que tanto goza nesse pau? – ruminava Nanda sem, contudo, nada dizer.

Batia uminha do jeito que Raul gostava. E continuava triturando os pensamentos: – Eu não sou nenhuma puxadora de escola de samba e muito menos a rainha da bateria! (Até porque Raul também não era nenhum porta-estandarte, embora estivesse sempre de prontidão, se é que o leitor me entende...). Não sou daquelas que rebolam a bunda e deixam os homens enlouquecidos de pau duro e as mulheres desejando ser como aquela que deixa os caras de pau duro. É – eu sei – tem mulher que adora deixar o homem excitado com seus requebros, trejeitos e malícia. Mas eu não, pôrra! Não-sou-do-tipo!

Decididamente, Nanda não era do tipo sexual. E prosseguia na metáfora: – Vá lá. Se ainda fosse uma vez por ano, como acontece com os desfiles da escola de samba! Mas todos os dias? Haja pau! E haja mão, a minha! – e continuava batendo uminha, distraída com as imagens mudas da Sony instalada no quarto.

Um parênteses, caro leitor: Raul gostava de assistir uns “filminhos de sacanagem” – para apimentar o sexo, como ele gostava de dizer – acompanhando os raros boquetes de Nanda. A delicada questão requer explicação: outra idiossincrasia de Raul era a de gostar de fazer apostas conjugais sobre os pequenos eventos do dia-a-dia que valiam um boquete para quem vencesse. Bobagens de menino. Qualquer coisa: podia ser uma aposta sobre o tempo, os minutos de atraso na entrega do jornal matutino, ou o humor da empregada ao chegar para o trabalho. É verdade que Raul não tinha muita sorte nesse jogo, mas isso não o incomodava; ganhando ou perdendo, ele sempre saía no lucro. O mesmo, porém, não acontecia com Nanda que nunca viu muita graça nessa história, mas que, se tivesse que escolher, dos males o menor: preferia ganhar a partida.

E, então, era assim: quando nada de interessante estava passando na TV, ele diminuia o som do aparelho e esquecia-se no desejo de ter o pau nas mãos de Nanda. Nanda, condenada ao suplício da punheta diária, mão direita ocupada, manuseava o controle remoto com a outra e sintonizava a novela que a distraía do encargo enfadonho. Nessas alturas, já treinara a leitura labial dos personagens e a novela já ganhara fundo musical com os gemidos de Raul: Assim, assim, Nandinha...

E Nanda remoía para si mesma: – Caralho, Raul (dadas as circunstâncias, desculpe-me o leitor, a redundância das expressões fálicas são inevitáveis). Hora dessas vou contratar uma puta para bater punheta para você todos os dias. Pronto! Tercerizo essa epopéia masturbatória! Pelo menos a trabalhadora leva uma grana, porque eu mesma não ganho nada, só canseira! – e nessas horas, lembrava de uma amiga afrancesada que gostava de dizer: – Qu’est-ce que tu pense? Que “chupá pica” non “canse”? Só nós sabemos o quanto custa! – concluía estoicamente a companheira.

Nanda parecia se animar com a solução encontrada, ainda que imaginária: – É isso mesmo, contrato uma “Irina Palm” (lembra-se, leitor, da adorável personagem do filme inglês?), de mãos aveludadas e que o levará às alturas do Grande Gozo, na consumação de uma Eterna Punheta!

Neste ínterim, Raul gozava e, como era de costume, afrouxava o que ainda poderia haver de censura, abrindo o coração: – Nandinha, meu amor, você bate uminha como ninguém mais! Você é a minha deusa das mãos de ouro!

E Nanda, ainda com a mãos molhadas da labuta, não podia deixar de pensar na bunduda do abre-alas da Salgueiro, a escola de samba que sempre ocupara um lugar especial no coração flamenguista de Raul.

Roque Tadeu Gui


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Réquiem para o mundo

A água, oriunda do transbordamento dos oceanos, subiu rapidamente, atingindo o sopé da montanha sagrada. E continuou a subir, ameaçando com fúria o antigo mosteiro. O velho Lama acordou de seu cochilo entrepreces e avistou o horizonte que até a pouco se perdia no ar frio das grandes alturas, a tempo de ver a enormidade do tsunami que ruidosamente avançava sobre o retiro. Os olhos miúdos reconheceram a cena já esperada. Com o semblante sereno – o mesmo que o caracterizara em tantas outras situações no decorrer de sua longa vida – o velho caminhou em direção ao sino de 4000 anos que por inúmeras vezes brandira, a exemplo dos monges antecessores que outrora fizeram ecoar a melodia solitária do metal ferido sobre os lençóis brancos dos vales que se desdobravam montanha abaixo. Reproduzindo o gesto ancestral, tomou do tronco de cedro milenar e arremeteu-o de encontro à grande cúpula de bronze. O som grave vibrou, entoando um requiém em último adeus, e misturou-se com a imensidão da água que engolia o teto do mundo.


segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Telefone

Num encontro de acasos, os novos amigos se descobriram. Ela sempre atrasada, ele sempre a esperava. A mulher-sem-tempo se eternizava na infinitude-de-dias-e-noites que amargava o homem. Ele andava de malas prontas, desgostoso da vida e das pessoas, mas se divertia com a ingenuidade da mulher que vivia a desfazer bagagens e queixar-se da pressa do mundo.
Trinta minutos era o tempo que lhes foi reservado quando se dera o anúncio do juízo final. A primeira pergunta, ele a disparou sem piedade: o que você faz com as relações? Atônita, balbuciou: o possível. Mas aquela era a resposta dele à pergunta por ela devolvida! Deixara os velhos amigos a entreter-se com os livros que não podiam ler e esperar pelo alívio de sua companhia que já não cedia, rendido à dor e ao isolamento.
A mulher angustiada quebrava a amargura muda desse homem. E feito luz da tarde se infiltrando entre folhagens densas num jardim solitário, a alma do homem abria-se suavemente e iluminava o rosto daquela mulher, com a doçura e vivacidade que só se pode receber dos mais generosos amigos.
Naquela metade de hora de prosa aleatória, ninguém mais sabia o que era excesso ou escassez. Era apenas tempo sem medidas. Abusada, a mulher antecipou-se a encerrar seu falatório para não ser interrompida pelo cansaço e esgotamento do homem, pois até os amigos se cansam. Consegui te manter por meia hora ao telefone, uma glória, provocou triunfante a amiga. O homem, como era sábio e generoso, apenas sorriu. O silêncio que se seguiu encorajou os sentimentos da mulher. Precioso tempo, ela sussurrou, estar com você durante esses poucos eternos minutos. Tal como o pôr-do-sol, quando se olha novamente já se foi, mas não se esquece sua imagem. E assim, antes que ele partisse, ela pode dele ouvir, amo você.

Cláudia Carneiro

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A verdade possível

– Acho que Raul escapa da terapia, Teo! – diz Vera, com um franzido das sobrancelhas escuras, grossas e bem delineadas, acompanhado pelo sorriso irônico, muito familar ao velho analista.

– Sei, você desconfia que ele não fala das coisas verdadeiramente importantes. E, então, ele não faz terapia direito, do jeito que deveria ser – responde o Dr. Teodoclus, ou simplesmente Teo, como seus pacientes preferem chamá-lo, dispensando o título que herdou da faculdade de medicina.

– É, Teo. O Raul engana. Não sei se apenas o terapeuta, ou também a ele mesmo. Acho que quando o bicho pega ele escapa... Eu queria te perguntar uma coisa. Sei que você não faz terapia de casal, não é? Mas, você não acha que é interessante? Numa terapia de casal o que um diz pode ser confrontado pelo outro... Assim, não tem muito para onde fugir: se o cara diz isso ou aquilo, o outro pode dizer “não, não foi assim e coisa e tal...”. Pão-pão, queijo-queijo!

Lá vem vera de novo – pensou Teo – com o seu desejo de controle, de confronto, de não deixar o marido escapar da terapia - aliás, o marido fazer terapia foi a condição sine qua non para que ela concordasse em continuar no casamento: – Você gostaria de encurralar o Raul num canto da parede e não deixar espaço para ele fugir, não é? – disse o analista, pensando no estranho verbo que acabara de usar: “encurralado”, algo como estar no curral, cercado, controlado. Fazia sentido, diante da atitude recorrente de Vera no que dizia respeito a não dar espaço para que Raul se movimentasse na relação conturbada do casamento e, agora, até mesmo na terapia do marido.

– O velho lance do controle, não? – completou o analista.

Vera, endireitando-se na poltrona e exibindo novamente o sorriso irônico, sua marca registrada: – É, Teo. Eu não sou psicóloga, não entendo muito disso, mas um dia eu gostaria de inventar uma terapia que não deixasse o terapeuta apenas com a verdade do paciente. (Aí está novamente, pensou Teo, a pequena inventora imaginando uma maneira de impedir que o terapeuta seja enganado pelo paciente. Vera vivia pensando em geringonças e tudo quanto é tipo de dispositivo que, segundo ela, poderia tornar a vida mais previsível, mais controlável. Mas, essa história do marido enganar o terapeuta... será que ela fala de si, cogitou Teo?)

– É, Vera. Mas qual é a verdade do Raul? A mesma que a sua?

Vera parece não ouvir a pergunta-comentário de Tom e continua: – O cara pode enganar o terapeuta... Eu venho aqui, digo tudo, não fico escondendo. Estou aqui para isso. Agora, Raul certamente não fala... Só para testá-lo, perguntei se ele havia falado com o Dr. Carlos sobre a história da escritura. A tal história do direito de usufruto que ele registrou para a ex-mulher sobre o imóvel que ele doou meio-a-meio para a filha deles e para nosso filho. Perguntei, e ele respondeu: – Não falei não! Prá que falar? – Vera repete as palavras ditas pelo marido fazendo as caretas que ele teria feito, um misto de arrogância e desprezo, e continua: – Taí, o circo tá pegando fogo e ele diz que não vale a pena falar do incêndio... Vai por mim, Teo, Raul escapa! – exalta-se.

– Mas, parece que a situação chegou a bom termo, não? – Teo pondera, tentando apontar para uma atitude não-escapista de Raul – Você disse que Raul compreendeu sua raiva diante do episódio da escritura, não? Parece que foi importante você ter dito a ele sobre seus sentimentos de traição e menos-valia. E parece que ele foi capaz de reparar a confusão que ele mesmo aprontou, não?

– É, Teo... – diz Vera, quase balbuciando e agora um pouco mais tranquila – De fato, nossa conversa sobre o acerto foi no dia em que ele teve sessão com o Dr. Carlos... Mas, ainda acho que precisamos descobrir uma maneira de não deixar o terapeuta tão vendido à verdade do paciente! – retoma Vera, inconformada.

– Vera, você não acha que o analista e o paciente buscam juntos uma verdade que nem um nem o outro conhece? Como acontece aqui entre nós dois. O quê mais poderiamos fazer? – dando ênfase retórica à pergunta.

– Mas, Teo, pense por um momento. Não seria fantástico, Teo... saber a Verdade?

– Vera, só podemos buscar a verdade juntos... a verdade... aquela que for possível.

Roque Tadeu Gui

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Horizonte

Nasceu uma menina, derradeira na dúzia de filhos do velho e cansado homem; este não mais se interessava pelo novo mundo, sentava-se no alpendre da casa, o olhar perdia-se no horizonte, nem notava quando, sozinha e largada, a menina crescida ajeitava-se ao seu lado e silenciava o olhar na mesma direção, quem sabe o encontraria no infinito. Morreu o pai, sem nunca desviar o olhar da própria tristeza.

Cláudia Carneiro

domingo, 15 de novembro de 2009

O bigode do meu pai

Não recebi amor de minha mãe. Ela era uma mulher dura e dizia o que pensava, sem titubear.
Lembro da ocasião em que resolvi participar de um concurso de poesia organizado por uma emissora de rádio da minha cidade. Devia ter uns 12 anos. Os candidatos apresentavam suas poesias no programa que era transmitido ao vivo e uma banca de jurados avaliava a produção da garotada. Fui pré-selecionado e no dia do programa lá estava eu. A banca era constituída por três jurados e, como é de praxe nesses concursos – só que eu naquela época não sabia disso – dois dos juízes elogiavam enquanto que o terceiro destruía tudo o que os outros haviam dito: a conhecida estratégia “dois mocinhos e um bandido” que garantia a cota de emoções para os ouvintes.
Bom, aconteceu comigo. Depois de alguns elogios dos “mocinhos”, foi a vez do “bandido”. O cara disse tanta merda, mas tanta, que eu queria sumir; saí dali tonto, sem rumo. O auditório da pequena emissora ficava a alguns quarteirões de minha casa e não sei como consegui voltar sozinho. Minha precoce vocação literária acabava de ser enterrada naquele funesto concurso.
Cheguei em casa e fui direto para meu quarto; lá fiquei, horas intermináveis de absoluta incompreensão sobre o que havia ocorrido. Até então, eu achava que escrevia direitinho; era elogiado na escola, os professores me incentivavam quando eu apresentava as redações e até mesmo meus pequenos poemas. Tinham me convencido de que eu sabia fazer algo de razoável valor; foi por isso que me aventurei na empreitada daquele maldito concurso. Minha ingenuidade infantil não contava com a desgraça que se abateria sobre meu incerto talento, dando fim prematuro ao meu percurso literário. Pois foi o que aconteceu ali naquele auditório, diante de todos que puderam testemunhar o sepultamento de minhas pretensões infantis de ser um poeta.
Passei um dia sem comer trancado no quarto. Parecia que somente a mim a desgraça havia atingido; toda a vida fora daquele quarto continuava como se a ordem do universo não tivesse se alterado com o desastre que acometera minha vida. Ao final do dia seguinte, vencido pela fome, saí do meu vergonhoso refúgio, sem coragem de enfrentar a vida e o mundo hostil com o qual havia me deparado de maneira tão abrupta e brutal.
Chorando, aproximei-me de minha mãe. Ela segurou-me pelos ombros, olhou no fundo dos meus olhos, sacudiu-me várias vezes e disse: “Deixa de ser molenga, menino! Vamos, reage...”. Fui novamente surpreendido, desta vez por uma trombada – parecida com aquelas que eu criava para minhas miniaturas de automóveis – com uma verdade que me pareceu insofismável: a exigência de ser forte, de não me render às vicissitudes da vida. Com aqueles chaqualhões, dei-me conta de que a vida não é para molenga, filhinho da mamãe que chora porque não gostam de sua poesia. Foi assim, de súbito, e de uma só vez, que aprendi que o segredo era descobrir em que é que eu era bom, desfazendo-me das ilusões e das tentativas de ser o que eu ainda não sabia se poderia ser. A partir de então, andaria com cautela e apenas pelos caminhos dos quais tivesse certeza de conhecer as paisagens. Mamãe era assim: dura, incontornável, e não dava guarida a fraquezas de um menino fraco.
O amor que não tive de minha mãe recebi de meu pai. Ah! Que homem gentil! A lembrança mais doce que guardo comigo é a do roçar de seu bigode em minha barriga. Ele chegava – eu, deitado na cama ¬–, fazia cara de monstro aterrador, do jeito que as crianças temem mas tanto gostam, e que eu sabia ser pura dramaturgia, avançava sobre mim, levantava minha camiseta, fazia “bruuuu” com a boca em minha barriga e, balançando a cabeça, esfregava seu bigode em minha pele. Essa brincadeira que, para meu deleite, se repetia com frequência, era a demonstração cabal do seu amor por mim: pura poesia, aquela que eu já sabia ser incapaz de criar mas que tinha ali, generosa e graciosamente oferecida por meu querido pai.
Pois é, meu pai era assim... Acho que naquela época comecei a entender porque ele não era feliz com minha mãe.

Roque Tadeu Gui

Sobre joões-de-barro e sabiás

Uma coisa da qual não gosto é a de ser acordado pelo João-de-Barro. Êta pássaro enjoado! Logo cedo, faz um barulhaço; além de ser madrugador – o que todos os passáros são – parece que tem preferência por se acasalar de manhazinha, com os primeiros raios de sol, sei lá... faz uma confusão! Prefiro os sabiás! Ah, os sabiás entoam uma melodia celestial, uma verdadeira música dos anjos.

Pois é. Tive um sonho na noite passada. Não sei se já te falei sobre uma amiguinha que tive aos seis ou sete anos de idade. Ela era pequenina como eu, usava uma calcinha cor-de-rosa com babadinhos... Nessa época eu ganhei um velocípede, aprendi a andar e levava a menina na garupa, para cima e para baixo. Aonde eu ia levava minha companheira. Eu falava muito com ela, mas falava sozinho porque ela nada dizia; acho que ela era muito pequena. Ah, eu ainda não disse, mas ela era uma garota imaginária!

Bom, parece que essa garotinha cresceu e virou uma balzaquiana. Resolveu aparecer em meu sonho de ontem à noite. Uma mulher madura, interessante, bonita, sensual. Passamos a noite juntos, quero dizer, juntos no meu sonho. Saíamos para caminhar, conversávamos longamente, podia falar com ela sobre os assuntos que me interessam, minhas preocupações. Sentia-me... recompensado. Palavra estranha essa, não? Quero dizer, ela dava retorno às coisas que eu dizia. E eu sentia que recebia algo de volta, que minha fala não era em vão. Agora, me vem a palavra reciprocidade... Senti-me como a muito tempo não me sentia: leve, vivo e feliz! O ar era carregado de energia sexual, embora não houvesse imagens sexuais. Muito diferente de minha vida com Maria Luiza...

O sonho rolou até de manhazinha. Preferia não ter acordado, de tão bom que estava o sonho. Mas acordei. Com o canto do sabiá! Passei o dia leve, pensando nas mulheres que fizeram parte de minha vida.

Roque Tadeu Gui

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Ana e Cíntia

Naquela manhã de sábado, pensei em fazer algumas fotos do centro da cidade para testar a canon D40 que acabara de ganhar de meu filho. Peguei o metrô na estação Consolação em direção ao Paraíso onde faria a troca de linha e seguiria para a Sé. Meus pensamentos sobre a pontualidade e regularidade daquele meio de transporte, mesmo num sábado de manhã, foram interrompidos pelo carro que parou na plataforma à minha frente.
Bancos todos ocupados, amparei-me no guarda-corpo próximo a uma das portas. Foi quando notei Ana e Cíntia. Meu olhar encontrou primeiro Cíntia. Há cerca de um metro de mim, encostava-se na parede do vagão, logo ao lado da porta. Algo em sua aparência me confundiu: seus cabelos escuros, lisos e brilhantes, discretamente amarrados em rabo-de-cavalo, alguns fios soltos sobre a orelha e a testa, denotavam uma delicada cabeça feminina, os olhos – não os podia ver, ocultos por óculos escuros largos – cobriam-lhe boa parte da face, os lábios, sem sinal de batom, de um rosa pálido.
De pequena estatura, Cíntia vestia uma calça jeans escura e uma blusa preta de gola rolê com mangas compridas até o meio da palma da mão: corpo quase todo coberto. Encostada na parede, pernas esticadas, pés calçados por um all-stars e plantados no assoalho do vagão, como os garotos preferem fazer. Chamou-me a atenção a ausência de volumes corpóreos: seios imperceptíveis sob a grossa blusa, coxas retas, nenhuma saliência ventral: um corpo magro e liso. Em um relance poderia ser facilmente confundida com um menino.
Em ângulo com Cíntia, avistei Ana. Perna esquerda avançada em direção ao corpo recostado de Cíntia, braço esquerdo esticado segurando-se no guarda-corpo que compartilhávamos e o outro apoiado na parede do vagão. Sua posição cercava e ao mesmo tempo protegia a pequena Cíntia.
Aparentando ser alguns anos mais velha do que Cíntia, Ana parecia ser uma mulher madura; um pouco mais alta, cabelos igualmente pretos, não tão lisos e um pouco mais curtos, um toque avermelhado nos lábios, rosto arredondado, todo seu corpo era mais roliço, denunciando curvas e formas femininas. Também usava calça e blusa pretas. A roupa, no entanto, diferentemente de Cíntia, não ocultava; antes, realçava-lhe a silhueta, a blusa com generoso decote mostrava os contornos dos seios. Nenhum óculos escondiam-lhe os olhos que apresentavam uma expressão suave.
Continuei observando-as, pensando tratar-se, até esse momento, de duas amigas. Cheguei à estação Paraíso e concentrei-me em transferir-me para a linha azul que me levaria à Sé. Entrei no vagão e sentei-me no primeiro assento disponível; coincidentemente, ali estavam Ana e Cíntia, novamente alojadas no guarda-corpo próximo à porta e diante de mim.
Percebi agora um gesto carinhoso de Cíntia para Ana. Apenas um toque suave no peito da amiga respondido por um singelo sorriso. Cíntia parecia antecipar a separação que ocorreria minutos após o gesto carinhoso: encostou a cabeça no ombro de Ana e novamente sorriu. Ana passou-lhe a mão sobre o cabelo e sussurrou algo que não consegui ouvir. Quisera sacar da máquina fotográfica que trazia a tiracolo e fotografar o toque sutil, terno e discreto de Cíntia no peito de Ana; mais do que isso, quisera fotografar a aura daquele afeto transbordante flagrado sorrateiramente por mim. Senti-me como um ladrão que surrupia um momento íntimo de duas mulheres mas, a despeito da vergonha, persisti em meu olhar transgressor e obsceno.
Idéias passavam-me pela cabeça: Ana e Cíntia seriam amantes? Amigas, tão somente? Mãe e filha, apesar da pouca diferença de idade? Mãe e filho, a propósito de minha fantasia, agora descartada, de que Cíntia poderia se passar por um jovem? Ana, a mulher-que-contem e Cíntia, a criança-que-é-contida? Cada uma dessas imagens tocavam-me inevitavelmente, pois ali estava eu, transgressor, implicado em cada gesto, em cada imagem de ternura captada, em cada toque das mãos delicadas das duas mulheres, eu, observador tão inofensivo protegido pela discrição do olhar curioso. Nostálgico diante de uma manifestação de afeto em cena aberta.
O autofalante arrancou-me do devaneio, anunciando a próxima estação: Liberdade. Ana, mais uma vez, acariciou os cabelos de Cíntia e pela primeira vez pude entender suas palavras, numa leitura labial quase improvável. Penso ter vistouvido: “Já vou...”. A porta se abriu e Ana sumiu na multidão que se apinhava à entrada do vagão. Cíntia aproveitou um banco que vagara bem à minha frente e pude olhá-la por mais alguns minutos antes que chegasse a minha vez de desembarcar. Tirou os óculos escuros e então vi seus olhos sombreados por duas intensas olheiras. Coisa de quem passara a noite em claro. Teriam vindo, as duas amigas, da balada da noite de sexta-feira e ali se despedido? Teriam passado a noite entre os atos de amor e as discussões tão frequentes entre os amantes? Um tom soturno abateu-lhe ainda mais o semblante, algo indecifrável, doído, meio que sem esperança. Um ar de despedida e de um não saber até quando.

Roque Tadeu Gui

domingo, 29 de março de 2009

Caio

Encontrei-o na entrada do elevador para a Cidade Alta. Faltavam-me 5 centavos para comprar o bilhete, na carteira, somente três notas de R$ 50 e duas de R$ 20. Quase desistia, pensando no pacote de moedas que receberia como troco. Utilizando a nota de 20 seriam 399 moedas a serem carregadas cidade acima.

Foi quando o menino me abordou, esticando o braço e oferecendo uma moeda de 10 centavos, sem dizer nada. Embaraçado, peguei a moeda. Agradeci, mas rapidamente entendi o gesto de oportunidade. Ação igual a essa deveria ter acontecido inúmeras outras vezes: turista sem condições de pegar o elevador por excesso de dinheiro na carteira! O garoto certamente identificara um pequeno nicho de negócio de sobrevivência, ou seja, oferecer aos passageiros abastados os miúdos necessários para o transporte.

Perguntei ao garoto se ele estaria por ali quando eu descesse. Disse-me que não, mas perguntou se eu lhe pagaria um lanche na Cidade Alta. Foi então que notei a sua frágil estrutura física: magro, esquálido na verdade, os ossos pontudos aparecendo por debaixo da camiseta, pés descalços, cabelos desgrenhados. Impressionou-me seu olhar apagado, sem vida. Daria a ele uns 10 ou 12 anos; difícil de adivinhar a idade real que se escondia naquele monte de ossos.

Concordei. Fomos para a porta do elevador. Enquanto esperávamos, o menino, sempre muito sério, foi chamado pelos policiais que faziam a ronda no local. Rápida conversa e o garoto voltou. Perguntei o que os guardas queriam e ele disse que haviam dito a ele para cortar o cabelo. De todo o seu semblante, o cabelo a ser cortado seria o último detalhe que me chamaria a atenção; impressionou-me sim a face, na qual não podia vislumbrar qualquer possibilidade de sorriso. Pareceu-me que aquele garoto jamais sorrira.

Cidade Alta. Ainda no corredor, tirei a nota de 20 e dei ao garoto. Tive o ímpeto de dizer-lhe para se cuidar, como se isso pudesse alterar o seu destino. Antes, perguntei-lhe o nome. Num lampejo ocorreu-me que dizer o próprio nome pudesse representar um gesto de afirmação de sua própria existência, ainda que tão desvalida. Caio pegou o dinheiro, agradeceu, não sorriu, e nos perdemos de vista.

Continuei minha caminhada pela praça em direção ao Pelourinho. Alguns metros e minutos adiante deparo-me novamente com Caio, agora crescido, talvez mais esquálido do que antes, desdentado, assustado, fragilizado, fisionomia alquebrada, camiseta rasgada, pés descalços, mãos amarradas para trás, feito pricioneiro por dois policiais. Paro para ver a cena.

Uma terceira policial aproxima-se, mulher corpulenta e aparência durona, pergunta aos colegas sobre a apreensão que haviam realizado. Um frasco de pílulas. Parece que Caio descobrira um novo negócio de sobrevivência.

A policial fala em tom jocoso sobre a prisão. Os dois homens continuam a escoltar Caio Crescido que quase não consegue acompanhar o passo rápido dos policiais, tamanha a fraqueza física. Segue, certamente, para a delegacia, onde será apertado para entregar o traficante para o qual trabalha. Em seguida, será devolvido para a rua, seu mundo e sua morada. Enquanto olho a trágica figura descendo a praça, penso em Caio Criança, em sua fome e falta de sorriso.

Salvador, 29 de março de 2009.

Roque Tadeu Gui