A que viemos?
terça-feira, 30 de março de 2010
J de giló
Andrezinho, já acostumado com os elogios da professora, sente-se orgulhoso e sorri de satisfação: já foi reforçado inúmeras vezes ao apresentar suas redações em sala de aula. É verdade que antes de apresentá-las faz questão de mostrar aos pais, principais incentivadores à arte da escrita que se manifestou precocemente no pequeno André. Leva seu trabalho para a sala de aula respaldado por uma apreciação prévia de seus apoiadores; isto lhe dá segurança de ter feito um bom trabalho.
Um dia após a prova de redação “Alimentos para uma vida saudável”, a professora Cora, como de costume, faz comentários sobre as redações dos alunos. Chega a vez de André.
– Andrezinho, mais uma vez, sua redação está impecável, você tem a imaginação muito fértil, sabe usar as palavras com muita propriedade, usa os verbos com perfeita concordância, tem um vocabulário muito rico. Continua cometendo alguns erros de ortografia, curiosamente com uma palavra sobre a qual já lhe chamei a atenção: “jiló” é com “j” e não com “g”, tal como jenipapo, jequitibá, jesus, jiboia, jipe, joanete, joelho, jornal, jovem, jumento. Lembra-se de que já falamos a respeito? – a professora estranha a persistência do erro de André, menino esperto, aplicado, que aprende tudo rapidamente sem necessidade de reiterações. Por isso mesmo, resolve adotar medidas mais enérgicas para facilitar a memorização da grafia correta da palavra “jiló”.
– Andrezinho, faça o seguinte: traga para mim, na próxima aula, uma folha com a palavra “jiló” escrita 30 vezes. Preste muita atenção a cada vez que você escrever “jiló”, perceba como a palavra fica bem escrita – o jota é uma bela letra, talvez uma das mais elegantes do alfabeto, vem do latim, foi a última a ser incoporada ao nosso idioma, antes da inclusão do “K”, “W” e “Y”, com a nova revisão ortográfica – perceba como a palavra fica equilibrada, bonita. Leia para você mesmo as trinta palavras escritas e memorize que todas elas se escrevem com a letra jota.
Andrezinho desta vez abriu somente meio sorriso. Que coisa mais chata! Escrever 30 vezes a mesma palavra, eu que gosto de escrever, de colocar histórias no papel, dar asas à imaginação. Repetir, repetir, repetir... Coisa mais sem graça.
Dia seguinte, Andrezinho entrega o dever de casa à professora. Título: “J” de Giló. A seguir:
giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló, giló.
Ao final, a assinatura de André, com o nome completo, André Junqueira Alves, que é assim que ele gosta de assinar suas “obras literárias”, tamanho o orgulho que tem de seu incipiente talento de escritor. A seguir, cidade e data.
A professora arregala os olhos, empalidece, não consegue aceitar aquilo que se apresenta aos olhos incrédulos. Começa a suspeitar de um grave quadro de dislexia, talvez um TDAH – que está muito em moda – quem sabe problemas emocionais severos, escondidos por detrás daquela fachada de menino estudioso e inteligente. Resolve chamar os pais e expor o problema. Tem grande apreço por Amdrezinho e não permitirá que ele seja consumido por uma dessas síndromes neuropsiquiátricas que grassam no mundo contemporâneo.
Os pais, preocupados com o alerta da professora, levam Andrezinho ao neurologista que, para espanto de todos, diz que o menino está bem. Por via das dúvidas, levam-no ao psiquiatra que por sua vez também diz que o menino está bem. Levam, então, ao psicólogo que apenas constata que Andrezinho está um pouco tenso e ansioso com toda a confusão que estão fazendo com ele. Desnorteados, os pais resolvem então dar o resto da semana de folga para o filho para que ele possa descansar da correria.
Segunda-feira, de manhã, lá vai André para a aula de português. Traz consigo um texto que escreveu no final de semana, pois que o corre-corre atrás de especialistas o afastaram três dias de suas tarefas. Entrega o texto para a professora Cora:
O Giló
“O giló é considerado um legume, mas, na verdade, é um fruto da família das solanáceas – descobri no google – assim como a berinjela; é parente da jurubeba e do pimentão. O giló é muito comum no Brasil e na África; fiquei pensando se foram os escravos que o trouxeram para o Brasil.
O giló é um alimento muito amargo. Dizem que ele é muito nutritivo, parece que tem muito carboidrato e proteína, cálcio, fósforo, ferro, vitaminas A, B e C. Cozido, e comido, faz bem para gripes, resfriados e febre: é um baita de um alimento. Mas, eu odeio giló! Minha mãe diz que ele é bom para o fígado e para o estômago. Mas, mesmo assim, eu odeio giló! Minha mãe diz que eu não sou uma criança razoável porque se sei que o giló é bom para a saúde então eu deveria comê-lo. Mas eu ODEIO giló!
Um pensamento passou pela minha cabeça nesses dias de “crise do giló”: Porque é tão errado escrever “giló”? Descobri em minhas pesquisas no google – meu pai diz que é uma “fonte confiável”– que a palavra vem do latim, língua que a professora tanto gosta, “Solanun gilo Raddi”. É, parece que mais alguém costuma trocar as letras!”.
André Junqueira Alves
Brasília (DF), 29 de março de 2010.
Nota do autor: Pesquisas subsequentes de Andrezinho – claro que no google – revelam que nos paises da américa espanhola o “giló” (ou “jiló”, como deseja a professora Cora) é conhecido como “gilo del Brasil”.
Roque Tadeu Gui
domingo, 21 de março de 2010
Nunca aprendi a ser homem
Nunca aprendi a ser homem. Embora tenha crescido com a presença de meu pai e cercado de irmãos mais velhos, nenhum deles conseguiu me ensinar a respeito da masculinidade. Não lembro de ter sentido o calor do corpo de meu pai. Ele era um homem arredio, pouco dado a manifestações de afeto, seja por palavras, seja por gestos. Era como se ele não tivesse corpo. Sua presença exalava a autoridade que exigia respeito, até mesmo temor. Afeto não. Tivesse ele me colocado no colo e talvez eu pudesse ter sentido a presença de sua virilidade. Quem sabe eu não tivesse ficado tão a mercê da magia afetuosa de minha mãe, santa mulher!
Meu pai era bruto, não tinha respeito por minha mãe. Não lembro de gestos ostensivos de violência, mas também nunca o surprendi em momento de ternura. Nunca consegui imaginar que eu poderia ser um homem como meu pai. Ele me negou a sua masculinidade. Hoje, procuro homens que possam ser meus amigos. Admiro-os. Desejo ansiosamente fazer parte dessa confraria cujo acesso me foi proibido, assimilar uma essência que me faz falta. Invejo homens como Jimmi Hendrix e Nei Matogrosso. Ambos possuem corpos que expressam sua verdade; eles são muito machos. Das mulheres, amo Clarice Linspector, ela viu a verdade. E a verdade é terrível.
Roque Tadeu Gui
Ausência
Sentia a falta dele. Eu tinha uns seis anos de idade, reclamava das ausências impostas pelo trabalho de meu pai. Ele sabia disso e procurava me tranquilizar, sempre dizia que voltaria logo, não ficaria fora mais do que alguns dias. Mas para mim era sempre uma eternidade. Sentia falta de sua atenção cuidadosa, de seu olhar meigo, dos nossos passeios “proibidos”. “Proibidos” porque eram passeios sobre os quais nada contávamos para minha mãe. Aqueles dias em que meu pai viajava eram dias de exílio da minha condição de filha querida.
“Tozinho” – era assim que chamávamos papai, e “Tozinha” era a mamãe –, Tozinho um dia teve uma idéia. Plantou um grão de feijão que mal começara a germinar no dia em que saiu para uma de suas viagens. A plantinha ficava sobre a pia da cozinha bem na direção de uma réstia de sol que se projetava sobre ela. Tozinho fez uma marca na parede, alguns poucos centímetros acima do pequeno broto e me assegurou que estaria de volta antes que a plantinha ultrapasse aquela marca. E, de fato, Tozinho retornou antes que o pé de feijão ultrapassasse a marca. A partir de então, este seria o ritual que manteria meu coração infantil apaziguado. A cada viagem, novo grão de feijão era plantado. Havia ali uma promessa de que Tozinho regressaria e meu mundo voltaria a ser feliz.
Lembro-me que durante uma de suas ausências eu estava muito agoniada com o tempo que teimava em não passar. Minha mãe tentou me consolar dizendo que Tozinho já estava para chegar. Não acreditei nas palavras bem-intencionadas de minha mãe, afinal, o pequeno ramo de feijão ainda estava à meia altura do risco que meu pai fizera na parede. Não lembro de meu pai ter quebrado a promessa uma única vez. Manteve-se fiel a mim. Anos mais tarde, ele se separou de minha mãe.
Roque Tadeu Gui
sábado, 20 de março de 2010
Tremor
Às 23h45 da noite de 17 de março, o Edifício Saint Patrick tremeu, sacudindo os lustres e tilintando as louças nos armários dos 144 apartamentos do Bloco A. Houve quem dissesse que os cães pressentiram o tremor, inquietando-se minutos antes do estranho fenômeno.
O professor Flavinho, consumido num desentendimento com Dª Lucinha, sentiu o abalo sob os pés, viu o relógio cuco quase centenário, herança de seu avô paterno, despendar da parede, espalhando as partes pelo chão da sala. Algo inusitado para os 25 anos em que residiam naquele bloco. Com seu forte senso investigativo, correu para a janela, pensando tratar-se de algum caminhão muito pesado ou, quem sabe, de um tanque de guerra que passava. Descartou prontamente a ideia: caminhões não passam pelo eixinho àquela hora da noite e tanques de guerra, bem, lá se vão muitos anos desde a última vez que vira um deles desfilando no eixão.
Deu um subtotal na discussão com Dª Lucinha, recolheu os cacos do cuco, colocou-os sobre a mesa para posterior reparação, vestiu o roupão e foi para o corredor. Os vizinhos estavam igualmente alarmados, falavam em terremoto, abalo sísmico, deslocamento de placas tectônicas, desfiavam todo o repertório recém desenfurnado pela mídia em face dos recentes e trágicos acontecimentos no país vizinho. Professor Flavinho, homem muito bem informado sobre eventos sísmicos – acompanhara com grande atenção os eventos do Chile e lera todas as informações científicas disponíveis sobre o assunto – tratou de acalmar os ânimos, assegurando a todos que era muito improvável que o planalto central viesse a sofrer catástrofe semelhante. Deveria haver uma explicação plausível para o estranho tremor. Os vizinhos, conhecedores da reputação do professor, homem sério e comprometido com a busca da verdade científica, tranquilizaram-se e voltaram para seus apartamentos.
Professor Flavinho fez o mesmo: isso é trabalho para cientistas! – pensou o vivido professor – ou seja, isso é trabalho para o professor Flavinho! – regozijou-se diante da perspectiva de um novo enigma. Suas mais recentes conquistas científicas haviam consolidado seu prestígio como cientista amador no Distrito Federal: a desmistificação da suposta combinação nociva à saúde de manga com leite, bem como, do suposto declínio peniano dos homens com a idade, havia sido noticiada pelo principal jornal da cidade. Novos desafios, é disso que um homem de ciência precisa – vaticinou o professor.
Ligou para o amigo-assistente, o velho Raul, convocando-o, quer dizer, convidando-o para o café da manhã do dia seguinte. Raul tinha a rara qualidade de instigar Flavinho com questões que ajudavam a esclarecer os mistérios investigados. O professor podia sempre contar com ele; sentia-se profundamente grato ao amigo que o socorrera a tempo de um acidente de percurso ocorrido em sua última investigação. Raul era o cara!
Dia seguinte, logo cedo, a dupla de cientistas lançou-se ao desafio de examinar o estranho fenômeno. Primeira providência: o professor ligou para o Laboratório de Fenômenos Sísmicos da Universidade de Brasília para saber de algum registro de abalos sismicos cujos sinais pudessem ter alcançado a cidade. Embora improvável, os dois amigos decidiram que era importante descartar a hipótese e foi o que aconteceu: nenhum abalo sísmico detectado.
O professor Flavinho avaliou que o tremor sentido pelos moradores do Ed. Saint Patrick deveria ter atingido algo em torno de 3 graus na Escala Richter, intensidade necessária para mover objetos em um prédio de apenas seis andares. Como seria possível? Um grande caminhão ou um tanque de guerra passando explicaria, mas tais hipóteses foram as primeiras a serem descartadas mediante observação in loco feita pelo professor. O quê, então?
Quem sabe se o terreno do prédio não teria cedido em algum ponto, movimentando a estrutura em busca de acomodação? Convocaram o síndico que tratou de examinar a edificação. Nada! O Edifício Saint Patrick, apesar de quase 40 anos de construção, apresentava-se inabalável, sem trincas e rachaduras, nas paredes ou nos pisos. O mistério se avolumava, inquietando a mente do experiente professor e seu assistente.
Passaram o dia matutando hipóteses que eram, uma a uma, descartadas. Ao entardecer, professor Flavinho dispensou seu auxiliar, confiando que a mente, após intenso trabalho de busca, precisaria de repouso para permitir que ideias inconcientes inusitadas pudessem emergir. Lera sobre isso em um artigo psicanalítico sobre o papel dos sonhos na solução de problemas.
Naquela noite, Dª Lucinha, preocupada com o estresse do marido, convidou-o para assistirem um filme do Almodóvar na HBO: Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos. Flavinho aceitou de bom grado; afinal, passara o dia imerso num quebra- cabeças para o qual não vislumbrava solução. Espairecer era o que ele precisava. O filme foi do agrado de ambos, conversaram sobre o estilo único de Almodóvar, de como aquele era o grande filme do diretor espanhol que conseguia de modo sui generis captar a alma feminina. Chegou a passar pela cabeça de Flavinho que, se não tivesse comprometido sua vida com a ciência, cinema é o que ele gostaria de fazer. Imerso nesses pensamentos, o professor recolheu-se com Dª Lucinha.
Flavinho gabava-se de dormir muito bem, poucas coisas roubavam-lhe o descanso. Aquela noite, contudo, foi diferente. Inquieto, o sono conturbado, rolou na cama, imagens catastróficas sucedendo-se em sua mente. Um sonho lhe sobreveio: viu-se nos tempos do serviço militar – Flavinho fora do CPOR, tropa de elite em sua época – marchando cadenciadamente com seus camaradas, um grande pelotão. Ele era o capitão e ia à frente de seus homens. Aproximaram-se de uma ponte. De súbito, o capitão Flavinho dá ordens para que o pelotão pare; em seguida, ordena para que os soldados atravessem a ponte em passo livre, ou seja, não cadenciado. Faz parte das instruções militares, interromper a marcha cadenciada ao atravessar pontes. O pelotão, contudo, não obedece as ordens do capitão que, então, se desespera. Flavinho acordou sobressaltado, molhado de suor. Um pesadelo. Como de hábito, rabiscou algumas das imagens oníricas em seu caderno de anotação que sempre fica na mesinha ao lado da cama. Aprendera o macete num curso sobre sonhos que fizera no ano anterior; os sonhos eram um caminho para a investigação do inconsciente e o professor Flavinho confiava que esse seria o grande campo de investigação do futuro.
No dia seguinte, Raul, novamente convocado para o café da manhã, encontrou um professor Flavinho com profunda olheiras de uma noite mal dormida. O professor contou o pesadelo que tivera e a estranha sensação de que o sonho tinha algo a ver com o filme que assistira em companhia de Dª Lucinha. Mas, o quê? E por quê? Desorientados, voltaram-se para o problema maior que os afligia: o que explicaria os tremores percebidos no Ed. Saint Patrick? Foi quando Flavinho teve um insight – o professor gostava do termo inglês insight, soava como algo criativo e cientifico – um lampejo que iluminou toda a questão: tremor, Almodóvar, mulheres à beira de um ataque de nervos, exército, homens, marcha cadenciada, ponte, passos livres. Sua cabeça era só imagens. O professor empalideceu, respiração suspensa. Raul temeu tratar-se de um novo infarto do amigo cientista, desta vez devido ao esforço intelectual excessivo e uma noite intranquila.
Felizmente, o professor Flavinho recuperou o fôlego, o rubor retornando às faces. Acabara de formular uma nova hipótese sobre o abalo de 3 pontos na Escala Richter que acometera o Ed. Saint Patrick no qual, por obra do destino, habitava um amante da ciência! Recobrando a calma, expôs sua ideia ao companheiro:
– Eureka, caro Raul! Como sabemos, por experiência própria, as mulheres são seres notáveis em suas oscilações humorais, não é mesmo? – Raul fransiu a sobrancelha, apertando os olhos em sinal de claro assentimento.
– Pois é – continuou o professor – o sonho desta noite fez-me lembrar de uma lição que aprendi lá no CPOR. É o seguinte: aprendi que um pelotão em marcha quando se aproxima de uma ponte, sobretudo se ela for de madeira, recebe ordens para que os soldados relaxem a cadência da marcha, adotando o passo normal, para prevenir o efeito de “sincronização de fase”. Sabe o que é isso, Raul? – Raul arregalou os olhos.
– Eu explico. A ponte tem uma oscilação própria, às vezes imperceptível, dependendo, é claro, da sua extensão. Pois bem, a marcha cadenciada dos homens pode amplificar essa oscilação, intensificando-a ao ponto de derrubar a ponte. É por isso que libera-se o passo dos soldados, para evitar o tal efeito de “sincronização de fases”.
Raul conseguia acompanhar a explicação mas não tinha a menor ideia de onde ela iria levar. Manteve-se atento, sabedor da esquisitice brilhante do “chefe”.
– Então, Raul. Juntando a evidência amplamente compartilhada por todos de que os humores femininos são de natureza oscilatória e sabendo que a raiva de uma mulher furiosa – qualquer um pode facilmente atestar o fenômeno – produz ligeiros tremores sob nossos pés – quem já não sentiu isso? – juntando esse conhecimento com a velha lição aprendida no CPOR cheguei a seguinte hipótese:
– O tremor percebido pelos moradores do Edifício Saint Patrick, de cerca de 3 graus na Escala Richter, na noite de 17 de março, foi produzido por uma notável coincidência da ocorrência de humores femininos que produziram efeitos psicocinéticos consonantes, resultando em amplificação do movimento oscilatório imperceptível da edificação, percebido pelos moradores como um tremor. Trocando em miúdos, meu caro Raul, mais de 100 mulheres acometidas de um ataque de nervos, todas ao mesmo tempo, podem ter gerado um fenômeno psicocinético – li algo a respeito em uma revista de experimentos parapsicológicos – que associado com a “sincronização de fases” – conforme a lição do CPOR – abalou as estruturas do Saint Patrick!
Raul ouviu, estupefato, não se sabe se de surpresa ou de admiração pela astúcia do “chefe”, oscilou lentamente a cabeça em sinal afirmativo como que a querer ser convencido da hipótese do professor Flavinho.
– Agora, meu caro Raul, a dar crédito a esta hipótese, ousada, eu admito – mas a ciência é feita de ousadia –, precisamos dar o passo seguinte: a experimentação! – Raul estremeceu; aprendera com a própria experiência que o empirismo ousado colocara em risco, da última vez, a vida do professor.
– É claro, amigo, que tomaremos os cuidados de sempre, adotaremos os princípios éticos da pesquisa, procurarmos evitar danos psicológicos às mulheres e circunstantes, etc, etc.
Enquanto ouvia, Raul ficou imaginando como o professor Flavinho faria para reproduzir o suposto fenômeno de “sincronização de fases” conjugado com “efeitos psicocinéticos” produzidos pela raiva feminina e o que poderia resultar de tal experiência. Embora achasse a ideia um tanto desarvorada, não ousaria desistimular o velho amigo, e vai que ele tivesse razão! Despediu-se do professor, dizendo que o experimento teria que aguardar, pois ele, Raul, estaria saindo para um longo período de férias.
Roque Tadeu Gui
domingo, 7 de março de 2010
Conjugação
Cansaço de quê?
Na verdade, eu queria colo, ter o direito de ser frágil, não pensar em problemas, tampouco imaginar ou correr atrás de soluções que parecem nunca chegar.
Hoje estou só, como quase sempre; a solidão parece ser maior do que tem sido.
Sinto-me um grão de areia, um bebê sem berço, um pássaro sem ninho: sem acalento.
Quanta vontade de puxar a barra da saia de qualquer uma que passe para mostrar que eu estou aqui! Quem sabe esse alguém me escuta, me faz sorrir, passa sua mão em minha cabeça: um dengo, uma atenção. Será que o que eu quero é tanto assim?
Liguei para o Daniel, sempre tão ocupado, tão cheio de preocupações. Seu nome: trabalho. Sugeriu-me que procure um analista ou alguma outra coisa para fazer: - Vá trabalhar Susana!
Acumulo mágoas. Só queria atenção e levei um chega prá lá. Desprezo no lugar de aconchego. Recém batizada de chata, de mala, pensei se o problema não poderia ser meu. Sou tão complicada assim? E, em meio aos xingamentos, ouvi que precisava resolver minhas questões em análise. E não é isso que estou fazendo? Será que de nada está adiantando, isto aqui? Quanto ainda preciso sofrer, errar para aprender a acertar, a andar com minhas próprias pernas? Conseguirei um dia?
Hoje me sinto perdida, aqui e acolá, procurando acessar minhas dificuldades, tentando compreender quem sou eu e até concordando em ser a tal maldita mala. E também a chata! O que quero? O que posso pedir? Quero tanto assim? Peço muito? Ou peço para alguém que nada pode ofertar?
Mas as pessoas não erram sozinhas: eu erro, tu erras, ele erra... Não é assim a conjugação? O erro vira um ciclo vicioso. Quem errou primeiro? Até que ponto minhas atitudes são reações às dele? Até que ponto as dele são reações às minhas?
Não posso mudar os outros, mas posso mudar minha atitude diante da vida. E, assim, mudar a mim mesma... Será que eu posso?
Tenho pensado muito e já falamos sobre isso: até que ponto o que passo é decorrente de minhas cegueiras ou simplesmente tenho assumido os erros dos outros como meus.
Ajude-me a desvendar esse mistério, me ensine a ser mais forte, a me amar mais.
Estou um tanto perdida e não quero isso para mim.
Falo como uma forma de te ajudar a me ajudar.
Será que você me entende?
Beth Mori
segunda-feira, 1 de março de 2010
Carta a John
Cincinati, 12 de junho de 1819.
Querido irmão!
Podes imaginar a alegria que sentimos ao recebermos tuas notícias? Tanta felicidade exigiu que abríssemos a garrafa de brandy com a qual nos presenteaste por ocasião de nossa despedida do velho continente rumo às terras novas da América. Até mesmo Georgiana que, como você sabe, não é muito afeiçoada às bebidas fortes, brindou com alegria o recebimento de tua carta!
Não bastasse o amor que temos por ti e o fato de tuas palavras sempre serem bem-vindas, teríamos ainda tuas reflexões a iluminar aspectos obscuros da vida, recônditos do universo que poucos se atrevem adentrar, pensamentos que certamente serão lembrados em séculos futuros como gemas preciosas da poesia inglesa! Eles nos fazem meditar sobre os mistérios da vida e nos confortam, embora, devo te confessar, nem sempre consiga alcançá-los com meu limitado entendimento. Sabes, tu és um poeta e eu sou apenas um aventureiro, um comerciante em busca de fortuna: vim para a América em busca de fazer a vida e tenho angariado somente muitas decepções!
Dizes que fazer poesia é apenas criar, o que todo ser humano pode, em princípio, fazer; aprendi contigo, irmão, em outra de tuas belas cartas, que o poeta embora parta de si – de onde mais haveria de partir? – não se limita a si; antes, a poesia vem através de si. Atrevo-me a pensar que, ainda que quisesse, o poeta jamais se bastaria; por mais que desejasse limitar-se aos eventos de sua própria vida, sua arte não se conformaria a esses limites estreitos, pois ela vem de muito antes do tempo e do espaço habitado pelo poeta, e antecipa-se ao futuro. És um exemplo: ainda tão jovem e já convives com as profundidades!
Asseguro-te, irmão. És um poeta! Um criador! E o mundo te reconhecerá no devido tempo. De que é feita tua arte? Um outro poeta, de um século vindouro, habitante de um continente ainda mais jovem do que este que viemos buscar, perguntará sobre a matéria da poesia. Certamente gostará de saber que concordaste com o que ele dirá: que tudo é fonte e motivo para a poesia. Que o mundo é a fornalha na qual crepita a matéria fluida da qual se originam os brotos do vir a ser.
Já te disse, jovem irmão, e reitero, com parco conhecimento da tua arte, que percebo em tuas palavras o acesso privilegiado que tens aos Confins, as estranhas terras onde se encontram todas as nossas lembranças, aquelas que compartilhamos secretamente com nossos semelhantes – crianças em perpétua busca do fazer-alma – desde tempos imemoriais. Em teus poemas – coágulos mundanos da vida sofridamente vivida – acessas o mundo obscuro dos pensamentos ainda não pensados, daquilo que veio antes e de tudo que poderá vir a ser depois desse breve momento de nossas vidas. Esse é o mundo dos Confins, onde habitam as razões da poesia.
Fiquei pensando sobre o que disseste sobre a utilidade do mundo, justamente para mim que acredito ser um homem do mundo, um desbravador em busca de oportunidades, embora prestes a retornar à velha mãe Inglaterra, derrotado e cabisbaixo. Sei que desdenhas daqueles que enxergam o mundo apenas como um vale de lágrimas, lugar sombrio e de penúria no qual aguardamos esperançosos a salvação que virá num tempo futuro. Não! Dize-nos que o mundo é uma grande escola, na qual somos crianças aprendendo a ler, tendo apenas nosso coração como livro-guia. Para ti o mundo é o Vale do Fazer-Alma! As lágrimas fazem parte da construção do ser de cada um de nós e não nos asseguram um lugar póstumo no Paraíso, pois este é reservado para as almas não nascidas, aquelas que não se encarnaram no Vale e não gozaram da oportunidade de serem calcinadas pelas emoções do mundo.
É engraçado, irmão, como tornas o mundo indispensável! Para ti, não faria sentido fugir das atribulações, das angústias e dos pesares. A Alma não far-se-ia e ficaríamos condenados a ser apenas fagulhas cintilantes de Deus. Ao invés, nossa condenação é sermos almas e não apenas inteligências, cada qual descobrindo, na jornada pelo Vale, a própria singularidade: o mundo ajuda-nos a criar a experiência, prenchendo com nossa carne e nosso sangue as formas dos Confins. O mundo, tu me disseste, e penso já ter agora entendido, oferece a matéria prima para que o poeta da vida – que somos todos – o transforme em alma.
Vês, irmão, o que fazes com tuas palavras? Como agitas a mente dos que te amam e te consideram? Como ofereces uma nova perspectiva sobre a vida, o mundo e os seres humanos?
Georgiana envia-te um forte abraço e pede-me que te diga que não demoraremos a te encontrar novamente nas terras frias de nosso país. Como já te antecipei, as coisas aqui em América não estão lá muito bem, fazendo-nos crer que talvez nosso retorno seja o melhor a fazer. Ampara-nos a alegria de rever-te.
Um brinde a ti, querido irmão.
Amorosamente,
George e Georgiana.
Nota do Autor: A carta é ficcional. George e Georgiana de fato existiram, ele irmão mais velho de John Keats (1795-1821), ela, esposa desse irmão. De fato, irmão e cunhada foram para os EEUU em 1818 tentar a vida, retornando à Inglaterra por volta de 1820. A resposta ficcionada foi inspirada pelo impacto imaginativo sobre sobre o autor da carta que John Keats enviou ao irmão em abril de 1819, na qual expõe sua poética idéia do mundo como o “vale do fazer-alma” (the vale of soul-making). As idéias de John Keats impactaram igualmente dois grandes analistas contemporâneos, W.R-Bion e J. Hillman (respectivamente, com as concepções de “negative capability” e “soul-making”, imagens poéticas transformadas em conceitos analíticos).
Roque Tadeu Gui