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sábado, 20 de março de 2010

Tremor

Às 23h45 da noite de 17 de março, o Edifício Saint Patrick tremeu, sacudindo os lustres e tilintando as louças nos armários dos 144 apartamentos do Bloco A. Houve quem dissesse que os cães pressentiram o tremor, inquietando-se minutos antes do estranho fenômeno.

O professor Flavinho, consumido num desentendimento com Dª Lucinha, sentiu o abalo sob os pés, viu o relógio cuco quase centenário, herança de seu avô paterno, despendar da parede, espalhando as partes pelo chão da sala. Algo inusitado para os 25 anos em que residiam naquele bloco. Com seu forte senso investigativo, correu para a janela, pensando tratar-se de algum caminhão muito pesado ou, quem sabe, de um tanque de guerra que passava. Descartou prontamente a ideia: caminhões não passam pelo eixinho àquela hora da noite e tanques de guerra, bem, lá se vão muitos anos desde a última vez que vira um deles desfilando no eixão.

Deu um subtotal na discussão com Dª Lucinha, recolheu os cacos do cuco, colocou-os sobre a mesa para posterior reparação, vestiu o roupão e foi para o corredor. Os vizinhos estavam igualmente alarmados, falavam em terremoto, abalo sísmico, deslocamento de placas tectônicas, desfiavam todo o repertório recém desenfurnado pela mídia em face dos recentes e trágicos acontecimentos no país vizinho. Professor Flavinho, homem muito bem informado sobre eventos sísmicos – acompanhara com grande atenção os eventos do Chile e lera todas as informações científicas disponíveis sobre o assunto – tratou de acalmar os ânimos, assegurando a todos que era muito improvável que o planalto central viesse a sofrer catástrofe semelhante. Deveria haver uma explicação plausível para o estranho tremor. Os vizinhos, conhecedores da reputação do professor, homem sério e comprometido com a busca da verdade científica, tranquilizaram-se e voltaram para seus apartamentos.

Professor Flavinho fez o mesmo: isso é trabalho para cientistas! – pensou o vivido professor – ou seja, isso é trabalho para o professor Flavinho! – regozijou-se diante da perspectiva de um novo enigma. Suas mais recentes conquistas científicas haviam consolidado seu prestígio como cientista amador no Distrito Federal: a desmistificação da suposta combinação nociva à saúde de manga com leite, bem como, do suposto declínio peniano dos homens com a idade, havia sido noticiada pelo principal jornal da cidade. Novos desafios, é disso que um homem de ciência precisa – vaticinou o professor.

Ligou para o amigo-assistente, o velho Raul, convocando-o, quer dizer, convidando-o para o café da manhã do dia seguinte. Raul tinha a rara qualidade de instigar Flavinho com questões que ajudavam a esclarecer os mistérios investigados. O professor podia sempre contar com ele; sentia-se profundamente grato ao amigo que o socorrera a tempo de um acidente de percurso ocorrido em sua última investigação. Raul era o cara!

Dia seguinte, logo cedo, a dupla de cientistas lançou-se ao desafio de examinar o estranho fenômeno. Primeira providência: o professor ligou para o Laboratório de Fenômenos Sísmicos da Universidade de Brasília para saber de algum registro de abalos sismicos cujos sinais pudessem ter alcançado a cidade. Embora improvável, os dois amigos decidiram que era importante descartar a hipótese e foi o que aconteceu: nenhum abalo sísmico detectado.

O professor Flavinho avaliou que o tremor sentido pelos moradores do Ed. Saint Patrick deveria ter atingido algo em torno de 3 graus na Escala Richter, intensidade necessária para mover objetos em um prédio de apenas seis andares. Como seria possível? Um grande caminhão ou um tanque de guerra passando explicaria, mas tais hipóteses foram as primeiras a serem descartadas mediante observação in loco feita pelo professor. O quê, então?

Quem sabe se o terreno do prédio não teria cedido em algum ponto, movimentando a estrutura em busca de acomodação? Convocaram o síndico que tratou de examinar a edificação. Nada! O Edifício Saint Patrick, apesar de quase 40 anos de construção, apresentava-se inabalável, sem trincas e rachaduras, nas paredes ou nos pisos. O mistério se avolumava, inquietando a mente do experiente professor e seu assistente.

Passaram o dia matutando hipóteses que eram, uma a uma, descartadas. Ao entardecer, professor Flavinho dispensou seu auxiliar, confiando que a mente, após intenso trabalho de busca, precisaria de repouso para permitir que ideias inconcientes inusitadas pudessem emergir. Lera sobre isso em um artigo psicanalítico sobre o papel dos sonhos na solução de problemas.

Naquela noite, Dª Lucinha, preocupada com o estresse do marido, convidou-o para assistirem um filme do Almodóvar na HBO: Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos. Flavinho aceitou de bom grado; afinal, passara o dia imerso num quebra- cabeças para o qual não vislumbrava solução. Espairecer era o que ele precisava. O filme foi do agrado de ambos, conversaram sobre o estilo único de Almodóvar, de como aquele era o grande filme do diretor espanhol que conseguia de modo sui generis captar a alma feminina. Chegou a passar pela cabeça de Flavinho que, se não tivesse comprometido sua vida com a ciência, cinema é o que ele gostaria de fazer. Imerso nesses pensamentos, o professor recolheu-se com Dª Lucinha.

Flavinho gabava-se de dormir muito bem, poucas coisas roubavam-lhe o descanso. Aquela noite, contudo, foi diferente. Inquieto, o sono conturbado, rolou na cama, imagens catastróficas sucedendo-se em sua mente. Um sonho lhe sobreveio: viu-se nos tempos do serviço militar – Flavinho fora do CPOR, tropa de elite em sua época – marchando cadenciadamente com seus camaradas, um grande pelotão. Ele era o capitão e ia à frente de seus homens. Aproximaram-se de uma ponte. De súbito, o capitão Flavinho dá ordens para que o pelotão pare; em seguida, ordena para que os soldados atravessem a ponte em passo livre, ou seja, não cadenciado. Faz parte das instruções militares, interromper a marcha cadenciada ao atravessar pontes. O pelotão, contudo, não obedece as ordens do capitão que, então, se desespera. Flavinho acordou sobressaltado, molhado de suor. Um pesadelo. Como de hábito, rabiscou algumas das imagens oníricas em seu caderno de anotação que sempre fica na mesinha ao lado da cama. Aprendera o macete num curso sobre sonhos que fizera no ano anterior; os sonhos eram um caminho para a investigação do inconsciente e o professor Flavinho confiava que esse seria o grande campo de investigação do futuro.

No dia seguinte, Raul, novamente convocado para o café da manhã, encontrou um professor Flavinho com profunda olheiras de uma noite mal dormida. O professor contou o pesadelo que tivera e a estranha sensação de que o sonho tinha algo a ver com o filme que assistira em companhia de Dª Lucinha. Mas, o quê? E por quê? Desorientados, voltaram-se para o problema maior que os afligia: o que explicaria os tremores percebidos no Ed. Saint Patrick? Foi quando Flavinho teve um insight – o professor gostava do termo inglês insight, soava como algo criativo e cientifico – um lampejo que iluminou toda a questão: tremor, Almodóvar, mulheres à beira de um ataque de nervos, exército, homens, marcha cadenciada, ponte, passos livres. Sua cabeça era só imagens. O professor empalideceu, respiração suspensa. Raul temeu tratar-se de um novo infarto do amigo cientista, desta vez devido ao esforço intelectual excessivo e uma noite intranquila.

Felizmente, o professor Flavinho recuperou o fôlego, o rubor retornando às faces. Acabara de formular uma nova hipótese sobre o abalo de 3 pontos na Escala Richter que acometera o Ed. Saint Patrick no qual, por obra do destino, habitava um amante da ciência! Recobrando a calma, expôs sua ideia ao companheiro:

– Eureka, caro Raul! Como sabemos, por experiência própria, as mulheres são seres notáveis em suas oscilações humorais, não é mesmo? – Raul fransiu a sobrancelha, apertando os olhos em sinal de claro assentimento.

– Pois é – continuou o professor – o sonho desta noite fez-me lembrar de uma lição que aprendi lá no CPOR. É o seguinte: aprendi que um pelotão em marcha quando se aproxima de uma ponte, sobretudo se ela for de madeira, recebe ordens para que os soldados relaxem a cadência da marcha, adotando o passo normal, para prevenir o efeito de “sincronização de fase”. Sabe o que é isso, Raul? – Raul arregalou os olhos.

– Eu explico. A ponte tem uma oscilação própria, às vezes imperceptível, dependendo, é claro, da sua extensão. Pois bem, a marcha cadenciada dos homens pode amplificar essa oscilação, intensificando-a ao ponto de derrubar a ponte. É por isso que libera-se o passo dos soldados, para evitar o tal efeito de “sincronização de fases”.

Raul conseguia acompanhar a explicação mas não tinha a menor ideia de onde ela iria levar. Manteve-se atento, sabedor da esquisitice brilhante do “chefe”.

– Então, Raul. Juntando a evidência amplamente compartilhada por todos de que os humores femininos são de natureza oscilatória e sabendo que a raiva de uma mulher furiosa – qualquer um pode facilmente atestar o fenômeno – produz ligeiros tremores sob nossos pés – quem já não sentiu isso? – juntando esse conhecimento com a velha lição aprendida no CPOR cheguei a seguinte hipótese:

– O tremor percebido pelos moradores do Edifício Saint Patrick, de cerca de 3 graus na Escala Richter, na noite de 17 de março, foi produzido por uma notável coincidência da ocorrência de humores femininos que produziram efeitos psicocinéticos consonantes, resultando em amplificação do movimento oscilatório imperceptível da edificação, percebido pelos moradores como um tremor. Trocando em miúdos, meu caro Raul, mais de 100 mulheres acometidas de um ataque de nervos, todas ao mesmo tempo, podem ter gerado um fenômeno psicocinético – li algo a respeito em uma revista de experimentos parapsicológicos – que associado com a “sincronização de fases” – conforme a lição do CPOR – abalou as estruturas do Saint Patrick!

Raul ouviu, estupefato, não se sabe se de surpresa ou de admiração pela astúcia do “chefe”, oscilou lentamente a cabeça em sinal afirmativo como que a querer ser convencido da hipótese do professor Flavinho.

– Agora, meu caro Raul, a dar crédito a esta hipótese, ousada, eu admito – mas a ciência é feita de ousadia –, precisamos dar o passo seguinte: a experimentação! – Raul estremeceu; aprendera com a própria experiência que o empirismo ousado colocara em risco, da última vez, a vida do professor.

– É claro, amigo, que tomaremos os cuidados de sempre, adotaremos os princípios éticos da pesquisa, procurarmos evitar danos psicológicos às mulheres e circunstantes, etc, etc.

Enquanto ouvia, Raul ficou imaginando como o professor Flavinho faria para reproduzir o suposto fenômeno de “sincronização de fases” conjugado com “efeitos psicocinéticos” produzidos pela raiva feminina e o que poderia resultar de tal experiência. Embora achasse a ideia um tanto desarvorada, não ousaria desistimular o velho amigo, e vai que ele tivesse razão! Despediu-se do professor, dizendo que o experimento teria que aguardar, pois ele, Raul, estaria saindo para um longo período de férias.

Roque Tadeu Gui

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