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segunda-feira, 1 de março de 2010

Carta a John

Cincinati, 12 de junho de 1819.

Querido irmão!

Podes imaginar a alegria que sentimos ao recebermos tuas notícias? Tanta felicidade exigiu que abríssemos a garrafa de brandy com a qual nos presenteaste por ocasião de nossa despedida do velho continente rumo às terras novas da América. Até mesmo Georgiana que, como você sabe, não é muito afeiçoada às bebidas fortes, brindou com alegria o recebimento de tua carta!

Não bastasse o amor que temos por ti e o fato de tuas palavras sempre serem bem-vindas, teríamos ainda tuas reflexões a iluminar aspectos obscuros da vida, recônditos do universo que poucos se atrevem adentrar, pensamentos que certamente serão lembrados em séculos futuros como gemas preciosas da poesia inglesa! Eles nos fazem meditar sobre os mistérios da vida e nos confortam, embora, devo te confessar, nem sempre consiga alcançá-los com meu limitado entendimento. Sabes, tu és um poeta e eu sou apenas um aventureiro, um comerciante em busca de fortuna: vim para a América em busca de fazer a vida e tenho angariado somente muitas decepções!

Dizes que fazer poesia é apenas criar, o que todo ser humano pode, em princípio, fazer; aprendi contigo, irmão, em outra de tuas belas cartas, que o poeta embora parta de si – de onde mais haveria de partir? – não se limita a si; antes, a poesia vem através de si. Atrevo-me a pensar que, ainda que quisesse, o poeta jamais se bastaria; por mais que desejasse limitar-se aos eventos de sua própria vida, sua arte não se conformaria a esses limites estreitos, pois ela vem de muito antes do tempo e do espaço habitado pelo poeta, e antecipa-se ao futuro. És um exemplo: ainda tão jovem e já convives com as profundidades!

Asseguro-te, irmão. És um poeta! Um criador! E o mundo te reconhecerá no devido tempo. De que é feita tua arte? Um outro poeta, de um século vindouro, habitante de um continente ainda mais jovem do que este que viemos buscar, perguntará sobre a matéria da poesia. Certamente gostará de saber que concordaste com o que ele dirá: que tudo é fonte e motivo para a poesia. Que o mundo é a fornalha na qual crepita a matéria fluida da qual se originam os brotos do vir a ser.

Já te disse, jovem irmão, e reitero, com parco conhecimento da tua arte, que percebo em tuas palavras o acesso privilegiado que tens aos Confins, as estranhas terras onde se encontram todas as nossas lembranças, aquelas que compartilhamos secretamente com nossos semelhantes – crianças em perpétua busca do fazer-alma – desde tempos imemoriais. Em teus poemas – coágulos mundanos da vida sofridamente vivida – acessas o mundo obscuro dos pensamentos ainda não pensados, daquilo que veio antes e de tudo que poderá vir a ser depois desse breve momento de nossas vidas. Esse é o mundo dos Confins, onde habitam as razões da poesia.

Fiquei pensando sobre o que disseste sobre a utilidade do mundo, justamente para mim que acredito ser um homem do mundo, um desbravador em busca de oportunidades, embora prestes a retornar à velha mãe Inglaterra, derrotado e cabisbaixo. Sei que desdenhas daqueles que enxergam o mundo apenas como um vale de lágrimas, lugar sombrio e de penúria no qual aguardamos esperançosos a salvação que virá num tempo futuro. Não! Dize-nos que o mundo é uma grande escola, na qual somos crianças aprendendo a ler, tendo apenas nosso coração como livro-guia. Para ti o mundo é o Vale do Fazer-Alma! As lágrimas fazem parte da construção do ser de cada um de nós e não nos asseguram um lugar póstumo no Paraíso, pois este é reservado para as almas não nascidas, aquelas que não se encarnaram no Vale e não gozaram da oportunidade de serem calcinadas pelas emoções do mundo.

É engraçado, irmão, como tornas o mundo indispensável! Para ti, não faria sentido fugir das atribulações, das angústias e dos pesares. A Alma não far-se-ia e ficaríamos condenados a ser apenas fagulhas cintilantes de Deus. Ao invés, nossa condenação é sermos almas e não apenas inteligências, cada qual descobrindo, na jornada pelo Vale, a própria singularidade: o mundo ajuda-nos a criar a experiência, prenchendo com nossa carne e nosso sangue as formas dos Confins. O mundo, tu me disseste, e penso já ter agora entendido, oferece a matéria prima para que o poeta da vida – que somos todos – o transforme em alma.

Vês, irmão, o que fazes com tuas palavras? Como agitas a mente dos que te amam e te consideram? Como ofereces uma nova perspectiva sobre a vida, o mundo e os seres humanos?

Georgiana envia-te um forte abraço e pede-me que te diga que não demoraremos a te encontrar novamente nas terras frias de nosso país. Como já te antecipei, as coisas aqui em América não estão lá muito bem, fazendo-nos crer que talvez nosso retorno seja o melhor a fazer. Ampara-nos a alegria de rever-te.

Um brinde a ti, querido irmão.

Amorosamente,

George e Georgiana.

Nota do Autor: A carta é ficcional. George e Georgiana de fato existiram, ele irmão mais velho de John Keats (1795-1821), ela, esposa desse irmão. De fato, irmão e cunhada foram para os EEUU em 1818 tentar a vida, retornando à Inglaterra por volta de 1820. A resposta ficcionada foi inspirada pelo impacto imaginativo sobre sobre o autor da carta que John Keats enviou ao irmão em abril de 1819, na qual expõe sua poética idéia do mundo como o “vale do fazer-alma” (the vale of soul-making). As idéias de John Keats impactaram igualmente dois grandes analistas contemporâneos, W.R-Bion e J. Hillman (respectivamente, com as concepções de “negative capability” e “soul-making”, imagens poéticas transformadas em conceitos analíticos).

Roque Tadeu Gui

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