O pai era homem de princípios.
E um desses princípios comandava que dinheiro não faz bem em mãos de criança. Se os filhos desejam alguma coisa, que peçam, se eu puder atender, ótimo, se não puder atender, conformem-se, será mais uma prova neste mundo de expiações e provas.
Assim pensava, assim agia o pai. Acontece que ele levava tais ideias ao extremo, digamos às últimas consequências, excedia-se num fundamentalismo que o distanciava das mais evidentes circunstâncias, incluindo aquelas mais primitivas e portanto básicas, como a fome e a sede.
Mas os filhos crescem. Até certa idade Pedro e Paulo jamais sentiram falta de dinheiro no bolso. Se desejavam um guaraná, Pai, dá um guaraná?, se desejavam uma empadinha, Pai, dá uma empadinha?, pedidos simples e esparsos, não havia shopping centers naquela época, a oferta de comes e bebes resumia-se a ida ao futebol nas tardes de domingo, quando cruzavam com uma carrocinha de pipoca ou algodão doce, e tais singelos pedidos simples e esparsos eram atendidos prontamente pelo pai provedor.
Mas os filhos cresceram e, aos poucos, deixaram de pedir. Pedir tornou-se embaraçoso, incômodo, desconfortável mesmo, manifestação de fraqueza, algo indigno (embora esta palavra não pudesse ser proferida naquela época por ainda desconhecida, o sentimento já estava presente), verdadeira humilhação, Paulo, tem graça agora a gente implorar por um sorvete!, É, Pedro, o que custava ele pagar uma coca-cola?, Ele é pão-duro, Paulo!, Uma sacanagem isso, né, Pedro..., E ainda faz cara feia, Paulo! Preferível, pois, a privação, a falta, a fome e a sede. Estoicos meninos.
Havia, porém, uma determinada situação em que predominava o instinto, as vísceras falavam mais alto, e o tal estoicismo ia para o brejo, a humilhação era esquecida, a fraqueza convertia-se em coragem, à merda com a dignidade: quando o nariz era inundado pelo perfume mais embriagador, na boca um jorro contínuo de saliva, o estômago a contorcer-se e secretar, as tripas roncavam tão alto que era possível ouvi-las do outro lado da rua, a vista turva (pela fumaça ou pelo desejo?), o coração disparado na tentativa de dar conta de tantas e tamanhas emoções.
Em se tratando de dois meninos às portas da adolescência, nada mais razoável que pensar que estamos descrevendo o encontro iminente com a primeira namorada. Paulo ainda não, mas Pedro andava de fato de olho virado para um rabo de saia, a moça vizinha de nome Heloisa e sobrenome ilustre, a família de posses, linda lourinha de farmácia que costumava tomar banho de sol nos fundos do quintal com as pernas de fora, uma loucura, Como levá-la ao cinema se não tenho trocado nem mesmo pra pipoca?, ruminava o desalentado Pedro; estas - e outras ideias! - passavam-lhe pela cabeça, e o pai inflexível, Dinheiro em mão de criança não produz coisa boa!
Que nada! Heloisa não tinha nada a ver com isso! O terremoto, a convulsão, a reviravolta das vísceras, a força bruta do instinto ainda não se devia à força das glândulas: tudo aquilo acontecia era quando os meninos passavam diante de uma carrocinha de churrasquinho de gato, a exalar aquele cheirinho delicioso e irresistível do interdito churrasquinho!
Até hoje, Pedro e Paulo, adultos, os filhos criados, com netos, se cruzam nas ruas com o tal perfume e a tal fumaça, pode-se ouvir do outro lado da rua o frear brusco do carro, param, descem, Moço, dá aí um churrasquinho!