A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Instinto (Cenas de um romance familiar)

O pai era homem de princípios.

E um desses princípios comandava que dinheiro não faz bem em mãos de criança. Se os filhos desejam alguma coisa, que peçam, se eu puder atender, ótimo, se não puder atender, conformem-se, será mais uma prova neste mundo de expiações e provas.

Assim pensava, assim agia o pai. Acontece que ele levava tais ideias ao extremo, digamos às últimas consequências, excedia-se num fundamentalismo que o distanciava das mais evidentes circunstâncias, incluindo aquelas mais primitivas e portanto básicas, como a fome e a sede.

Mas os filhos crescem. Até certa idade Pedro e Paulo jamais sentiram falta de dinheiro no bolso. Se desejavam um guaraná, Pai, dá um guaraná?, se desejavam uma empadinha, Pai, dá uma empadinha?, pedidos simples e esparsos, não havia shopping centers naquela época, a oferta de comes e bebes resumia-se a ida ao futebol nas tardes de domingo, quando cruzavam com uma carrocinha de pipoca ou algodão doce, e tais singelos pedidos simples e esparsos eram atendidos prontamente pelo pai provedor.

Mas os filhos cresceram e, aos poucos, deixaram de pedir. Pedir tornou-se embaraçoso, incômodo, desconfortável mesmo, manifestação de fraqueza, algo indigno (embora esta palavra não pudesse ser proferida naquela época por ainda desconhecida, o sentimento já estava presente), verdadeira humilhação, Paulo, tem graça agora a gente implorar por um sorvete!, É, Pedro, o que custava ele pagar uma coca-cola?, Ele é pão-duro, Paulo!, Uma sacanagem isso, né, Pedro..., E ainda faz cara feia, Paulo! Preferível, pois, a privação, a falta, a fome e a sede. Estoicos meninos.

Havia, porém, uma determinada situação em que predominava o instinto, as vísceras falavam mais alto, e o tal estoicismo ia para o brejo, a humilhação era esquecida, a fraqueza convertia-se em coragem, à merda com a dignidade: quando o nariz era inundado pelo perfume mais embriagador, na boca um jorro contínuo de saliva, o estômago a contorcer-se e secretar, as tripas roncavam tão alto que era possível ouvi-las do outro lado da rua, a vista turva (pela fumaça ou pelo desejo?), o coração disparado na tentativa de dar conta de tantas e tamanhas emoções.

Em se tratando de dois meninos às portas da adolescência, nada mais razoável que pensar que estamos descrevendo o encontro iminente com a primeira namorada. Paulo ainda não, mas Pedro andava de fato de olho virado para um rabo de saia, a moça vizinha de nome Heloisa e sobrenome ilustre, a família de posses, linda lourinha de farmácia que costumava tomar banho de sol nos fundos do quintal com as pernas de fora, uma loucura, Como levá-la ao cinema se não tenho trocado nem mesmo pra pipoca?, ruminava o desalentado Pedro; estas - e outras ideias! - passavam-lhe pela cabeça, e o pai inflexível, Dinheiro em mão de criança não produz coisa boa!

Que nada! Heloisa não tinha nada a ver com isso! O terremoto, a convulsão, a reviravolta das vísceras, a força bruta do instinto ainda não se devia à força das glândulas: tudo aquilo acontecia era quando os meninos passavam diante de uma carrocinha de churrasquinho de gato, a exalar aquele cheirinho delicioso e irresistível do interdito churrasquinho!

Até hoje, Pedro e Paulo, adultos, os filhos criados, com netos, se cruzam nas ruas com o tal perfume e a tal fumaça, pode-se ouvir do outro lado da rua o frear brusco do carro, param, descem, Moço, dá aí um churrasquinho!

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O "alemão" do Juninho

Aos quatro anos, Juninho era dessas crianças cheias de energia, dessas que conseguem se divertir muito transformando sucatas em preciosos brinquedos. A família morava numa casa modesta no interior de uma cidade do Norte do País. O pai, habilidoso marceneiro, popular na cidade, tido como um sujeito pacato e honesto. A mãe, dedicada costureira, muito trabalhadora, conhecida nas redondezas como Dona Zinha. Juninho cresceu ao lado de muitas crianças. Apesar de filho único, sempre foi cercado de companheiros para brincar. Na região onde moravam tudo era muito simples, os recursos muito escassos; porém, havia ali alegria, gente falando com gente, sorrisos, abraços, muita solidariedade. Os vizinhos se visitavam, havia bailes nos fins-de-semana, bolos de aniversário, no centro da praça principal, para a comemoração dos aniversários mensais. Havia sossego. O contato com o mundo vinha de algumas televisões e rádios da redondeza. Certo dia, Juninho estava entretido com seus brinquedos e amigos quando viu uma imagem na televisão que despertou seu interesse: eram homens, muitos homens, vestidos de forma estranha, com algumas coisas nas mãos, uns chapéus na cabeça, carros e outras coisas gigantes que passavam por cima de outras coisas, pessoas correndo, fogo, muito barulho e um moço que dizia “guerra” na televisão. Juninho correu para o pai. Muito assustado, olhou para ele e perguntou: “pai, o que é guerra?” O pai, muito desconcertado, afinal não esperava uma pergunta dessas, vinda do menino, pensou um pouco, respirou fundo, e disse: “filho, guerra é quando as pessoas não se entendem; quando há brigas; quando umas pessoas correm atrás das outras com revólveres, espingardas, facas, bazucas; é quando o céu fica preto de tanta poeira e as pessoas sujas de tanto lutar; é quando a conversa já não resolve; é quando as pessoas perdem o juízo, se é que, algum dia, o tiveram; é quando não há paz”. Juninho, muito pensativo, fez a derradeira pergunta: “pai, dá pra comprar uma bazuca da paz?”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Afeto à vista

espero afeto à vista
límpido, direto, caloroso
afeto a crédito
cobra juros extorsivos, impagáveis
desequilibra a balança emocional

espero afeto à vista
receptivo, puro, íntegro
afeto a crédito
corrói o estoque de carinhos
destrói o capital de afagos

espero afeto à vista
generoso, sutil, aberto
afeto a crédito
aprisiona, submete, induz
aniquila o nós, impõe o eu

espero afeto à vista
a esperança, a luz, a vida
afeto a crédito
conforma, consome
e some.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dia dos mortos

A última vez em que esteve em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de sua irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-se particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.

Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria sua solidão, que decidiu ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-lhe paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia seu coração.

A visita improvável causou estranheza ao pai que lá estava. Sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento da querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-o de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.

Felizmente, naquela tarde, ele tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, sentiu que deveria visitar o túmulo da irmã. Depois, foi ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais foi a um velório, acompanhou enterro ou visitou cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu sua avó materna, que morreu de velha e então lhe pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de sua jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos conseguiu se poupar de compromissos funerários.

Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Foi tocado pela tragédia – afinal, tem um filho da mesma idade – e sentiu-se convocado a ir ao funeral. Achou mesmo que já havia se poupado demasiadamente, e isto lhe pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratou de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabou ficando doente, teve febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e ficou de cama. Sentiu-se justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando seus sentimentos, concluiu que escapara da situação. Encheu-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.

No entanto, a ineludível continuará rondando, sabe que não conseguirá despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela o encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que ele ama, alguna daqueles que ele mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela o estará convocando para o encontro fatídico face a face.

Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-lhe que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensou que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.

Foi só. Finados, foi isso. Comeu uma picanha no almoço e bebeu um cabernet sauvignon, brincou com o cachorro e rosnou para sua mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-lhe pela cabeça que no próximo dia de finados irá ao cemitério, honrará seus mortos, renovará suas lágrimas, ainda que isto lhe custe o pressentimento do seu próprio fim. E, quem sabe, conseguirá brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.

Roque Tadeu Gui

Primeira pessoa

A última vez em que estevi em um cemitério foi no primeiro aniversário da morte de minha irmã mais jovem, há mais de 20 anos. Casamento recém desfeito, solitário, sem perspectiva, mas paradoxalmente livre e desafiado a encarar a possibilidade de uma nova vida. Talvez por isso mesmo tornara-me particularmente sensível ao tema da morte. Com a crise, a morte tornara-se uma realidade factível e muito concreta.

Foi numa tarde úmida, tal como esta em que escrevo, antes de seguir para um encontro que amenizaria minha solidão, que decidi ir ao cemitério. O estado de espírito melancólico pedia-me paradoxalmente que fosse ao encontro da angústia que espremia meu coração.

A visita improvável causou estranheza ao meu pai que lá estava. Ele sabia que o filho não era de ir a cemitérios, talvez porque, até então, não tivesse mesmo motivo para isso. Até então, eu nunca tinha perdido alguém tão próximo. O desaparecimento de minha querida irmã fez com que a morte deixasse de ser apenas uma abstração, uma vaga ideia sobre o fim da vida que ocorreria em alguma data distante, convencendo-me de que ela havia chegado muito perto. Nisto a morte se parece com a solidão que nos pega quando não temos mais quem nos socorra e ficamos então reduzidos tão somente a nós mesmos e à iminência de nosso fim.

Felizmente, naquela tarde, eu tinha a quem recorrer, num ato de solitário desespero. Ainda assim, senti que deveria visitar o túmulo de minha irmã. Depois, fui ao cinema com uma amiga. Desde então, nunca mais fui a um velório, acompanhei enterro ou visitei cemitério. A bem da verdade, houve uma única exceção: quando morreu minha avó materna, que morreu de velha e então me pareceu algo aceitável, uma morte dentro das expectativas da própria vida, diferente da morte prematura de minha jovem irmã. E, assim, ao longo dos anos consegui me poupar de compromissos funerários.

Até o dia em que o filho de um amigo suicidou-se. Fui tocado pela tragédia – afinal, tenho um filho da mesma idade – e sentiu-me convocado a ir ao funeral. Achei mesmo que já havia me poupado demasiadamente, e isto me pareceu errado. Iria, pois, ao sepultamento e tratei de desmarcar os compromissos agendados para aquela tarde. Só que acabei ficando doente, tive febre alta, dores no corpo, um grande mal-estar, e fiquei de cama. Senti-me justificado, ao mesmo tempo que aliviado por ser obrigado a faltar ao compromisso. Mais tarde, porém, avaliando meus sentimentos, conclui que escapara da situação. Enchi-se de vergonha, tomado pelo sentimento de acovardamento de quem mais uma vez fugira da verdade.

No entanto, a ineludível continuará rondando, sei que não conseguirei despistá-la por muito tempo. Mais dia menos dia ela me encontrará e, como não é raro acontecer, chegará sorrateira, talvez colhendo os que amo, alguns daqueles que eu mais gostaria de subtrair ao fascínio da indesejada. E, a cada assédio, ela estará me convocando para o encontro fatídico face a face.

Hoje é dia de finados, um feriado como tantos outros. Embora seja um dia destinado à lembrança dos mortos, não há sinal de morte no ar. Uma amiga foi visitar o túmulo do marido e ficou triste; contou-me que não dormiu bem naquela noite, teve taquicardia, achou que estava com algum problema no coração. Pensei que ela devia ter mesmo alguma coisa no coração, mas naquele coração que se esconde atrás do outro, o orgão fisiológico, e que é capaz de sentir a presença da morte, a tristeza de uma despedida reiterada e de saber tácitamente que, em incerto momento futuro, também estaremos mortos.

Foi só. Finados, foi isso. Comi uma picanha no almoço e bebi um cabernet sauvignon, brinquei com o cachorro e rosnei para minhs mulher. A morte ronda, mesmo sem ser convidada. Enquanto sorvia um generoso gole de vinho, passou-me pela cabeça que no próximo dia de finados irei ao cemitério, honrarei seus mortos, renovarei minhas lágrimas, ainda que isto me custe o pressentimento do meu próprio fim. E, quem sabe, conseguirei brindar ao gozo do breve interregno que antecede o encontro derradeiro.

Roque Tadeu Gui

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sem pedigree

Ele foi chamado de vira-lata e tomou como elogio: passa fome (emocional), apanha (da vida), chora (de saudade), mas não desiste de viver.

Instinto de morte

Ele teve um sonho: era uma sequóia gigante num bosque de sequóias. Algumas delas encontravam-se já petrificadas. Percebeu então o seu destino mineral.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Encontro marcado

Ela sempre atrasada e ele sempre adiantado. Resolveram acertar os ponteiros e, na hora certa, viveram felizes para o resto da vida.

Ausência

A saudade era tamanha que ele saiu para comprar cigarros no bar da esquina e nunca mais voltou. Perdeu-se no passado.

Traição

Caminhoneiro, soube que sua mulher havia fugido com seu melhor amigo. Escreveu no para-choque do caminhão: perdoar é fácil, difícil é esquecer.

Anestesia

O autor escrevia para aprender a lidar com sua dor. Certo dia precisou tomar um analgésico e a fonte secou. Nunca mais escreveu uma linha.

Como abotoar uma camisa

Cenas de um romance familiar

- Pedro, olha a sua camisa, está abotoada errado.

- Também não precisa falar assim com o menino...

- Assim como???

- Você traumatiza o menino...

- E como é que você quer que eu fale?

- Fale com jeito, ensine ele abotoar a camisa.

- Você quer dizer do seu jeito, não é?

- Do jeito que deve ser...

- Ah!, sempre do seu jeito!

- E como é que você acha que uma camisa deve ser abotoada, me diga?

- Assim, olhe Pedro, junte o último botão daqui de baixo com a última casa daqui de baixo, assim, abotoe e vá subindo.

- Pedro, é mais fácil juntar o primeiro botão de cima com a primeira casa de cima e ir descendo.

- Mas por que o seu jeito tem que ser sempre o melhor?

- Por que é mais fácil para o menino...

- Pois eu acho mais fácil do meu jeito, ora bolas!

- E eu do meu!!!

- Não precisa gritar!

- Quem está gritando agora é você.

- Por que será que não podemos conversar?

- Porque você não sabe conversar, sua opinião tem que prevalecer sempre.

- É mesmo, você acha que eu faço tudo sempre errado.

- A verdade verdadeira é que...

- Por acaso existe verdade que não seja verdadeira, verdade mentirosa por acaso existe?

- É modo de falar...

- Então fala direito!

- Eu falo como eu quero e pronto.

- Ah!, sei... Você quer que o menino aprenda a falar errado.

- E você pensa que é o dono da verdade.

- Pelo menos quero que ele fale direito, que não me venha com essa bobagem de verdade verdadeira...

- Direito?, direito?, direito?[c1] , só você sabe o que é torto e direito nessa casa?

- E por acaso você sabe?

- Sei... Sei... Sei...

- Merda de vida!

- Você sabe que detesto palavrão!

- Merda de vida!!

- Olha o menino...

- MERDA de vida!!!

...

- Vem cá, Pedro, deixa eu ensinar você a abotoar a camisa.

- Mãe, o que é casa?

Cólera, modo de tratar

Cenas de um romance familiar

Pedro, menino pequeno, sofria de acessos de cólera. Ao perceber no filho tais sentimentos, Otília, a mãe, disparava incontinente as palavras Está com raiva?, tira a cueca e pisa em cima!

Aquilo infalivelmente aumentava a raiva de Pedro, momentaneamente, mas tão logo, calmamente, ele conseguia reorganizar seus infantis pensamentos e especular sobre o possível significado daquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, quando Pedro podia entreter-se por um instante que fosse com o mistério contido naquelas palavras - Tira a cueca e pisa em cima! -, muitas coisas lhe vinham à cabeça de menino pequeno.

O primeiro pensamento era endereçado ao objeto cueca. Por que a cueca, e não a calça, a camisa ou as meias?, Pedro se perguntava. Bem verdade que para tirar a cueca era preciso primeiro tirar a calça, ainda curta naquela época. A calça não servia, a mãe enfatizava que era preciso pisar na cueca, e não na camisa, na calça ou nas meias.

O ato de pisar: eis o segundo elemento a ser considerado por Pedro em suas divagações infantis. Não bastava apenas tirar a cueca, jogar ela num canto qualquer, no cesto de roupa suja, botar ela pra lavar, esperar secar, vestir novamente, ou até mesmo escolher uma outra cueca, limpa naturalmente, não, era preciso tirar e pisar na cueca. Pisar pisar pisar pisar pisar, aquilo martelava na cabeça de Pedro.

Será que a raiva vai se escoar pelos meus pés ao pisarem a cueca?, pensava Pedro, que de fato não pensava a palavra escoar, demasiado erudita para sua idade, pensava Será que a raiva vai sair pelos meus pés?, pois pensava com as palavras de que dispunha naquela época de menino pequeno, mas, sem qualquer sombra de dúvida, ele aprendia a pensar. Se a raiva vai sair desse modo, pelos meus pés, por que não pode sair em cima da camisa, da calça ou das meias?, por que tem que ser sobre a cueca?, pensava Pedro.

Merda! Pedro ouvira a mãe pronunciar esta palavra algumas vezes, em situações parecidas com a que ele vivia quando ela recomendava Tira a cueca e pisa em cima! Por que ela então não tirava a calcinha e pisava em cima? Mas calcinha não é cueca. Talvez por isso gritar Merda fosse o equivalente de Tira a cueca e pisa em cima para uma mulher adulta que estivesse sofrendo de um ataque de cólera, pensava Pedro. Merda merda merda merda merda, agora uma outra palavra martelava na cabeça de Pedro.

Alguma possível relação entre cueca e merda?

Bem, o que era mesmo que despertava em Pedro tamanho ódio? O menino pequeno ao se entreter com tais pensamentos esquecia-se da raiva, e a mãe, sem o saber, desmoralizava o sintoma.

Psicanálise e o processo criativo

Sempre que vemos alguém a quem muito admiramos pronunciar-se de forma visceralmente discordante de nós, isso nos causa alguma estranheza, desconcerto, desconforto mesmo. Aconteceu comigo, ao ler em Kafka: “Não é um prazer ocuparmo-nos com a psicanálise e mantenho-me tão afastado dela quanto possível...” (Meditações, Guimarães Ed., 1997). E em José Saramago: “A última coisa que faria neste mundo seria psicanalisar-me.” (As palavras de Saramago, Companhia das Letras, 2010).

Dois gênios da literatura - por quem nutro sentimento de quase veneração -, o mesmo ponto de vista sobre a psicanálise, exposto de forma enfática e definitiva, e a minha mais profunda discordância deles, nesse aspecto. Quem sou eu para discordar destes gigantes?, é a interrogação que de imediato me vem à mente. Mas outras ideias afloram em seguida, outras possibilidades, resultado não de conhecimento teórico ou de leituras e especulações filosóficas, e sim de aprendizado adquirido a partir da experiência pessoal de ser analisado.

Gosto de pensar que aquilo que o processo de análise pode nos proporcionar de melhor é uma vida mais confortável. Podemos supor que o escritor retire de seu mais profundo desconforto perante a vida a matéria bruta para sua escrita criativa. Remover, portanto, este desconforto seria o mesmo que secar a fonte da criatividade? Tal receio, por hipótese (mesmo que de origem inconsciente), não pode ser afastado; esta ideia há muito tem sido ventilada por analistas e não analistas, ao discutirem a conveniência ou não conveniência de escritores criativos, ou artistas de um modo geral, submeterem-se à psicanálise.

Eis a questão apresentada de outra maneira: é preciso viver desconfortavelmente para que se possa manter vivo o processo criativo? (A esta altura, o leitor há de ter percebido que evito as palavras “felicidade” e “infelicidade”, demasiadamente gastas para exprimir certos estados de espírito, substituindo-as por “conforto” e “desconforto”, estas mais modestas, mais comedidas, mais realistas.) Este é o preço que se tem de pagar para preservar a capacidade criativa? Não será um preço alto demais? Bem, cada um sabe de si, do ônus e do bônus, dos custos e dos benefícios.

No entanto, podemos perguntar ainda: se removido, pelo menos em parte, o desconforto de que estamos tratando, por intermédio de uma análise bem sucedida, será possível manter e até mesmo desenvolver, aprimorar mesmo, a capacidade de criar? Por que não? De que tem medo o escritor criativo? De que tem medo até mesmo o analista que se deixa contaminar por tais idéias? O que haveria de tão poderoso na psicanálise que poderia apagar o que de melhor tem uma pessoa? De fato, há aqueles que pensam que não vale a pena correr riscos, como se o risco de algo melhor também não fosse uma possibilidade. Risco, para eles, significa sempre e apenas o pior, o negativo, a ameaça, o perigo de morte. É verdade que corremos riscos desde que nascemos. Nossas mães não nos deixaram aprisionados em um quarto escuro para que não corrêssemos qualquer tipo de perigo. Pois, em um sentido mais amplo no modo de pensar a vida, risco apresenta também a possibilidade de uma experiência nova, criativa, positiva, que proporcione crescimento psíquico, algo, portanto, inerente ao processo de se estar vivo.

Não faltam exemplos como o de Georges Bataille (1897-1962), que de aspirante a escritor passou à condição de autor consagrado, após ter sido aconselhado por seu analista a registrar suas fantasias sexuais e obsessões de infância. Ao se referir ao papel libertador da análise, Bataille afirma: “O primeiro livro que escrevi só pude escrevê-lo depois da psicanálise, sim, ao sair dela. E julgo poder dizer que só liberto dessa maneira pude começar a escrever.” (História do olho, Cosac & Naify, 2003).

Não penso que esta seja uma visão exageradamente otimista, mas a ótica de quem deseja viver plenamente suas possibilidades e desenvolver seu potencial como ser humano. Uma análise bem sucedida pode nos proporcionar tal experiência, e com ela o risco de vivermos mais confortavelmente, sem perdermos nossa capacidade de criar. A existência de incontáveis psicanalistas bons escritores, sobretudo aqueles que se dedicam à escrita ficcional, pode ser considerada uma evidência do que aqui exponho.

Pura ficção: que tal pensarmos Kafka e Saramago, ainda vivos, mais felizes e de bem com a vida, e escrevendo ainda melhor! Para nosso deleite, é claro.

Improbabilidade

Eles se amavam, não havia dúvida, mas eram tantos e tamanhos os obstáculos, tantos... que passaram a se amar ainda mais!

Dublê de corpo

Nanda viu-se envolvida nos braços de Raul; um Raul impetuoso que esfregava avidamente o corpo contra o dela, num tsunami voluptuoso que causou estranhamento na mulher. O quarto na completa obscuridade fez com que Nanda cismasse ainda mais com o comportamento do marido. Parecia outro, um outro homem ávido de tê-la, penetrá-la com aquele pinto duro feito uma rocha. Nanda sentiu-se ameaçada por tanta luxúria.

Raul, ou quem quer que ali estavesse, abria as pernas de Nanda com a fúria de um desmatador de florestas: o pau à frente, pressionando a junção de suas coxas. Nanda abriu-se e deixou-se levar. Raul gozou. Nanda deu um longo gemido e, por instantes, abandonou os pensamentos desconfiados. Adormeceram.

Café da manhã, no dia seguinte.

Nanda: – Gostei de ontem! O menino tava entusiasmado, não

Raul: – Éééé.

Nanda: – Até me passou pela cabeça que não era comigo que você tava transando...

Raul: – Ahhh.

Nanda (levando cada vez mais a sério sua desconfiança): – Isso é uma sacanagem! Fico muito decepcionada com você. Onde já se viu transar comigo pensando em outra pessoa!

Raul: – Nãooo!

Nanda, despedindo-se e já saindo para o trabalho: – Que falta de respeito! Fico puta da vida com essa falta de caráter!

E mal ouviu o comentário final de Raul: – Ãããã? Você se substima, Nanda...

Roque Tadeu Gui

Aprender a votar


Cenas de um romance familiar

O pai resolveu ensinar a Pedro e Paulo o que significava uma eleição, pois era tempo de eleição. Falava-se muito em Adhemar de Barros e seu retumbante lema de campanha: Rouba Mas Faz! Na esperança de que os filhos tivessem melhores opções quando crescessem, o pai pensou ensiná-los a votar. (Mal sabia ele que, tempos depois, até mesmo o bordão adhemarista seria motivo de plágio...)

Prepararam as cédulas, cada qual com o nome de um dos candidatos; ergueram a cabine de votação com a devida privacidade - o voto seria secreto, motivo de grande excitação entre os meninos; construíram urna de papelão com a indispensável fenda por onde seriam introduzidas as cédulas; a urna foi lacrada, o que deixava subentendida a possibilidade de fraude, a ser evitada a todo custo. A votação transcorreria no próximo domingo.

Nos dias que antecederam o pleito (palavra que não chegou a ser empregada por razões óbvias) só se falou de eleição. Às refeições, momento sagrado para a família, o almoço fumegante servido pontualmente às onze horas e o jantar às seis e meia, o pai pregava sobre as desejáveis virtudes de um candidato, falava de Ética - oportunidade imperdível para uma consulta ao Lello Universal -, explicava candidamente que fazer era obrigação do eleito e que não era correto roubar para governar - visto está, não era adhemarista -, alertava sobre a possível tentativa de compra de votos por parte de candidatos inescrupulosos. Mas o pai gostava mesmo era de discorrer demoradamente sobre o significado da palavra corrupção, aquilo que ele chamava de “degradação aviltante dos costumes”, e que ainda poderia levar o país a grandes dificuldades sociais e econômicas. (Mal sabia ele...) Paulo, inteligente e curioso, depois que recebera escancarados elogios de Dona Santa, a professora de latim, agora queria saber a origem das palavras e perguntou se corrupção vinha do latim e o pai respondeu que sim: corruptio, corruptionis, era a etimologia da palavra, e foi preciso voltar ao Lello para entender o que era etimologia.

O grande dia chegou, e o pai não deixou por menos: pregou sobre a importância da lei seca, o que não impressionou nem a Pedro nem a Paulo, ainda abstêmios. (Mal sabiam eles...) Logo pela manhã foram à urna, e os três votantes cumpriram rapidamente com suas obrigações cívicas.

Em seguida, passaram à apuração. A urna foi aberta solenemente. Ao pronunciar-se o nome do primeiro voto apurado -Adhemar de Barros - Pedro deu um pulo de alegria, foi tomado por louca euforia, havia ganho a eleição; foi ele quem venceu?, ou foi Adhemar o vencedor?; a confusão tomou conta do menino; Pedro delirou, embora não soubesse o que era delirar, mas delirou, pirou, ensandeceu de alegria, havia finalmente ganho alguma coisa, e não era qualquer coisa, era uma Eleição!

Para surpresa de Pedro a apuração continuou. Abriu-se o segundo voto: para o outro candidato; abriu-se o terceiro voto: também para o outro candidato. Encerrada a apuração: por dois votos a um, ganhou o outro candidato, decretou o pai, definitivamente.

Pedro, profundamente desapontado, tristíssimo, inconsolável, aprendeu o que era uma eleição. Apenas não encontrou melhores opções ao longo da vida...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pai

pai, vamos juntos descobrir o mundo
você olhando de cima e eu olhando de baixo
não se surpreenda se um dia você se sentir filho
a vida faz isso de vez em quando
é para você sempre se lembrar
como era o mundo visto daqui de baixo

pai, vem comigo caminhar
você de um lado e eu do outro
não se surpreenda se um dia você se sentir amigo
a vida faz isso de vez em quando
é para você sempre se lembrar
que a distância entre nós não precisa existir

pai, vem me ensinar as coisas da vida
você na frente e eu atrás
não se surpreenda se um dia você se sentir aluno
a vida faz isso de vez em quando
é para você sempre se lembrar
que você me ensina muito

pai, deixa eu lhe mostrar algo
você atrás e eu na frente
não se surpreenda se um dia você se sentir professor
a vida faz isso de vez em quando
é para você sempre se lembrar
que você também aprende comigo

sábado, 4 de setembro de 2010

Quero viver

antes de morrer, quero viver
o riso das alegrias possíveis
o choro das dores inevitáveis
o amor dos entes presentes
a saudade dos amores ausentes

antes de morrer, quero viver
a loucura da sanidade disponível
a lucidez da loucura abrupta
o desequilíbrio dos arrebatamentos
a quietude das emoções familiares

antes de morrer, quero viver
a beleza e a estranheza do tempo presente
a nostalgia das muitas alegrias
de um tempo passado que não mais existe
a expectativa e o desconhecimento do tempo futuro

antes de morrer, quero viver
as certezas da infinidade das dúvidas
as dúvidas da perenidade das certezas
o prazer do inusitado
o desconforto do previsível

antes de morrer, quero viver.

domingo, 8 de agosto de 2010

Estupidez

(Da série contwitter)

Por ciúmes, o cravo brigou com a rosa. Transtornado, despedaçou-a debaixo de uma sacada. Acabou solitário e espremido numa coroa de flores.

Crepúsculo

(Da série contwitter)

O amor trafegava em pista de alta velocidade. Escureceu, freou bruscamente, era do seu feitio. Não olhou no retrovisor, não viu o estrago.

Túnel

(Da série contwitter)

Sua amada ficara cega. Como ele só podia ver a própria dor, derramou pimenta nos olhos. Puderam compartilhar a escuridão, se enxergaram.

Soneto II

Pudera eu livrar-me dos apegos
de uma alma a temer o desamor.
Na esquina, a vida mostra a dor
e arrebata os sonhos e sossegos.

Maior sorte arrancar-me os desejos
teria, fosse vida do ator
que cala em lenço o pranto do amor
e se apraz com mil flores e gracejos.

O mar não me faria mais salgada,
o sol não me daria mais rudeza
que privar meu amor da alegria

de ter seu riso, e tão apaixonada,
atormentada em minha natureza,
sei que não mais da vida eu teria.

Partilha

Foram ao lançamento do livro. Ele adquiriu um exemplar para o casal. Ela protestou: e se eles se divorciassem? Comprou outro exemplar.

Roque Tadeu Gui

Confissão

Ela chegou de viagem. Ele brincou: tenho algo para lhe contar, dormi com... a blusa de seu pijama. Ela falou sério: eu também, com Roberto.

Roque Tadeu Gui

Maria Elizabeth Mori

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A canequinha

Da série Infância

Pedro acaba de completar 7 anos de idade e vive a expectativa de seu primeiro dia de aula. A mãe, mais aflita que o primogênito, escolhe a dedo a professora, de nome Dulce, amiga da família, reconhecida pela competência no trato com meninos que iniciam a vida de estudantes. Pedro vai até a casa da professora e de lá seguem juntos para o Grupo Escolar Dr. Flamínio Lessa, uma boa caminhada.

Não há qualquer incidente neste primeiro dia de aula, nem tampouco nos dias subsequentes de todo este primeiro ano letivo, a não ser na prova final, quando a diretora escreve na lousa Dê um abraço em sua professora, e Pedro permanece imóvel, petrificado, embora possa ler perfeitamente o que está escrito, apenas não pode obedecer àquela ordem porque não dá conta de lidar com o que ainda não sabe, seu amor por sua professora.

O ano letivo encerra-se, Pedro ganha o Primeiro Lugar do Estabelecimento, porém não comparece para receber o prêmio porque não sabe o significado da palavra Estabelecimento, mas tira nota 10 em todas as matérias, inclusive em Comportamento. Sim, porque esta é a única exigência da mãe desde o primeiro dia de aula, Não admito menos que 10 em Comportamento, nas outras matérias ela não fazia questão da nota máxima, Fique sabendo que apanha se me chegar com um 9,5 de Comportamento no boletim, ela ameaçadora, o tom grave na voz, Pedro sente que se trata de algo muito importante o tal Comportamento, sem saber muito bem o por quê de tanta estridência. Quando crescer, Pedro haverá de ler Shakespeare e deliciar-se com Muito barulho por nada.

Agora, ele acaba de completar 8 anos de idade e inicia o segundo ano primário. A mãe, ainda mais aflita que o primogênito, troca Pedro de escola em busca da melhor professora de segundo ano, Dona Yolanda é ótima, mas cuidado com ela porque é muito brava, a mãe adverte, Se o aluno não responde uma pergunta ele come o giz que ela lhe esfrega nos dentes, acrescenta a mãe terrorista, E em Comportamento então nem se fala, Pedro, é rigorosíssima, ela ameaçadora, a mãe, o tom grave na voz... Pedro agora já sabe o significado do quesito Comportamento, ou pensa que sabe.

O segundo ano está chegando ao fim, faltam dois meses para os exames finais, depois as férias, Pedro brilha em todas as matérias, só há 10 em seu boletim. Até que Dona Yolanda anuncia, sem qualquer sombra de remorso, Pedro, este mês você vai ficar com 9,5 de Comportamento, pois ontem você esqueceu de trazer a canequinha de beber água.

A princípio Pedro não compreende o que acaba de ouvir. Quando crescer, Pedro haverá de ler Saramago e deliciar-se com Ensaio sobre a cegueira, onde lerá “Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”, e ele haverá de formular a paráfrase Se podes ouvir, escuta, se podes escutar, repara. Por ora, Pedro apenas ouve, mas não pode escutar, tampouco reparar no que acaba de ouvir, porque só pode pensar em uma coisa: vai apanhar.

Em poucos meses Pedro terá 9 anos, praticamente um homem, pensa, mas vai apanhar, pensa, terá obrigatoriamente que apanhar, pensa, a mãe não poderá faltar com a palavra, pensa, ela deverá executar a sentença, pensa, pois o veredicto já foi pronunciado, pensa.

Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex!

Porque conhece este gracejo -- todos os meninos de sua idade gostam de repeti-lo! --, Pedro sabe que lei é lei, mas ele não se sente culpado, pensa que não merece o 9,5 por causa do esquecimento, pensa que talvez a mãe possa levar em conta as circunstâncias, afinal trata-se apenas de uma canequinha, e sente muita raiva de Dona Yolanda, Maldita professora, este é o pior palavrão que Pedro conhece aos 8 anos de idade, naturalmente proibidíssimo pelos pais, mas vai repetindo baixinho até chegar em casa, Maldita professora Maldita professora Maldita professora...

Pedro chega, entrega o boletim para a mãe, tenta justificar-se, Esqueci a canequinha, e apanha mesmo assim.

Dói muito mais na mãe.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A menina que não aceitava apelido

Uma garota alta, bochechas redondas e vermelhas, com uma franja loira escorrendo pela testa larga numa cabeça bem formada que lhe conferia um ar de inteligência e decisão, uma menina forte e valente. Chamava-se Linda. Inteligente ela era, decidida também, mas adorava uma encrenca.

O que mais odiava no mundo eram os puxa-sacos, para os quais tinha um faro especial. Na escola, detectava-os facilmente. Izildinha, por exemplo, colega de escola tornou-se sua arquinimiga por ser uma notória baba-ovo.

Foi assim. Um dia, na aula de Geografia, Izildinha, toda faceira, levou um presente para o professor: três biscoitos amanteigados feitos por sua mãe, delicadamente embrulhados em um guardanapo de papel de seda que era enlaçado por uma fita rosa: – Para o senhor, professor – disse dengosamente a menina.

Linda, à náusea, acompanhou todo o ritual deplorável de puxa-saquismo, esperou que o professor se voltasse para o quadro negro e disparou contra a colega: – Puxa-saco! Puxa-saco nojenta!

Era assim, a pequena Linda tinha raiva de puxa-saco a ponto de enjoar; dependendo do exagero da babação, chegava até a vomitar, de preferência em cima da criatura.

Izildinha não deixou por menos: – Puxa-saco é a mãe! Era tudo o que Linda precisava para se atracar com a colega. Quando o professor se virou para saber que xingatório era aquele, deu com duas meninas nariz com nariz, cada uma agarrando as bochechas da outra, grunhindo e rangendo os dentes. Foi difícil desatracá-las. Até hoje, Linda guarda as marcas das unhas da baba-ovo. O fato é que Linda nunca mais olhou para Izildinha. Desprezo completo, indiferença à existência da rival, eram as armas do arsenal bélico de Linda.

Linda tinha dois irmãos, um mais velho, Mauro, e outro mais novo, Tarciso. Era apaixonada por Mauro e ai do menino que mexesse com o irmão amado. Linda partia pra porrada. Tarciso não precisava que a irmã o defendesse; em dificuldades delinquentes chamava sua gangue, formada por três ou quatro amiguinhos da pesada, a turma que dava trabalho constante para o diretor. Era do tipo que fazia e depois resolvia.

Dizem que Linda se apaixonara pelo irmão mais velho quando ainda era bebê. Mauro, com dois anos, olhava para a irmã no colo da mãe e dizia, em seu idioma infantil: – Dindaaa, dindaaa... Linda se apaixonou irremediavelmente.

Quando foram para a escola, Mauro mostrou ser um garoto inteligente e estudioso, mas um tanto contido e inseguro. Precisava de alguém que o defendesse, e lá estava Linda para cobrir de porrada o eventual agressor. Dizia para o desafeto: – Qual é? Vai mexer com meu irmão, vai? Normalmente, o oponente desistia da empreitada porque encarar Linda não era fácil, todos sabiam.

Em casa Linda era chamada de “Dinda”, lembrança do jeito carinhoso de Mauro que a família logo adotou. Na escola e no grupo de amigos, Linda nunca aceitou apelidos. Era Linda Mourisco e pronto! Quem tentasse chamá-la de “Lindinha”, “Lin”, “Lindoza”, “Lindeza”, e outras corruptelas, sabia que levaria porrada, se você menino, e bochechas arranhadas, se fosse menina, pois Linda dava tratamento à altura dos adversários.

Um dia, aos 11 anos, em plena crise de autoimagem pré-adolescente, chegou em casa e baixou decreto: – De hoje em diante, não sou mais “Dinda”. Sou Linda, Linda Mourisco se preferirem. Nunca mais foi chamada de Dinda.

Roque Tadeu Gui

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O autógrafo

(Da série O Menino das Letras)

Depois do fatídico dia em que o escritor faleceu, o pequeno André vasculhou a biblioteca do pai à procura de livros que o ancestral português escrevera. Encontrou dois, por sinal, com nomes estranhos, como estranho parecia ser o autor: “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “Ensaio sobre a cegueira”.

Andrezinho pensou: afinal, o senhor amargo – lembre-se o leitor que o garoto chamava assim o velho escritor, numa espécie de intimidade concedida unilateralmente pelo menino das letras; o velho, seja lá onde estivesse, quem sabe acertando suas diferenças com Deus, de quem ele sempre discordara, não se oporia à ousadia de Andrezinho – então, o escritor era religioso? Seu pai assegurava-lhe que não, o senhor amargo era ateu, ou seja, aquele que não acredita em Deus, segundo pesquisa rápida do menino escritor... bem, vocês sabem onde! Ou, então, era médico de cego, oftalmologista, o pai ajudou, para escrever com conhecimento de causa sobre cegueira!

Mas, o que o atraiu mais do que os títulos dos livros foi um rabisco com o nome do escritor na primeira página do “Ensaio”: uma assinatura! O pai explicou ao menino que se tratava de um autógrafo que tivera a felicidade de obter do autor ao vivo, por ocasião de uma de suas vindas ao Brasil.

Ora, elucubrou Andrezinho, o pai tivera a sorte de conhecer pessoalmente o parente distante. Esta era uma experiência que ele jamais teria, vez que o senhor amargo fora desta para outra melhor, como dizia seu pai. Sentiu uma ponta de nostalgia por algo que nunca viria a ter.

Dia seguinte, Andrezinho foi fazer um dos passeios preferidos com seu pai: ir à Livraria do bairro e fuçar em todas as estantes. Era ali que o menino escritor descobria todos os gêneros de leitura, um excitante mundo de aventura. Nunca saía de mãos vazias: além do desbravamento do abrir e fechar livros, o pai sempre lhe comprava um livro que despertasse o seu interesse. Foi então que o menino, olhos estatelados, notou uma grande mesa disposta com todos os livros do senhor amargo. Fascínio puro, outros tantos nomes esdrúxulos – o leitor pode achar que a palavra “esdrúxula” é muito erudita para Andrezinho mas, lembre-se, trata-se do menino das letras que não perde a oportunidade de mostrar seus conhecimentos!

Na beirada da estante, percebeu um retrato do escritor em preto e branco, encimado pela frase “Saudade não tem remédio” e, ao lado, “1922-2010”. Primeiro, a frase, que supôs ser uma das preferidas do escritor, tocou-lhe a alma, ali onde ele sentira o sentimento nostálgico de nunca vir a conhecer pessoalmente o ancestral; segundo, fez as contas rapidamente e constatou que o senhor amargo morrera com 88 anos, tempo pra caraça na mente do garoto, embora certamente fugaz para o velho morto. E, abaixo, o mesmo nome rabiscado, igualzinho ao que vira no livro do pai.

O menino dirige-se ao vendedor:

– Por favor, quanto custa?

– Qual deles?

– Este, apontando para o retrato.

– Não, este não está à venda, é da editora, apenas chama a atenção para os livros.

– Mas eu quero comprar, quer dizer, peço pro meu pai comprar...

– Não dá! Temos que devolver para a editora.

O vendedor afasta-se para atender outro cliente, deixando um Andrezinho atônito, com uma enorme frustração tomando conta de sua alma. Jamais se encontraria pessoalmente com o senhor amargo para obter o seu nome rabiscado e a oportunidade de consegui-lo acabava de escapar-lhe!

Uma raiva incontida transformou-se em súbita ousadia e se apossou do garoto. Olhou para os lados e percebendo-se desapercebido pelas pessoas que estavam ao redor, tomou o mostruário com a foto, a frase, a data do nascimento e da morte, e a assinatura do escritor, levantou a blusa, enfiou o ainda quase furto na cintura, baixou a blusa, convencido da experiência única de transgressão perpretada, mas com a alma lavada. Dirigiu-se ao pai: – Pai, cansei de ver os livros, te espero na sorveteria.

Roque Tadeu Gui

sábado, 31 de julho de 2010

Lello & irmãos

Da série Infância

Aquilo acontecia principalmente ao final das refeições, a consulta ao dicionário.

As refeições constituíam-se sempre num momento solene para a família. O pai, à cabeceira, tomava seu lugar invariavelmente alguns minutos antes de servida a comida, e ai de um filho se não estivesse à mesa, e de mãos lavadas. A mãe destampava a panela e o arroz fumegante exalava um perfume característico, penetrante, inesquecível. Adorava receber o elogio raro e sincero, Ninguém faz um arroz como esse.

Todos comiam de início em silêncio, que o alimento precisava ser ingerido bem quente, uma das inúmeras manias do pai. À hora da sobremesa a conversação era mais que desejada, era mesmo incentivada. Os meninos então matracavam matracavam matracavam. Pai, o que é matraca? O pai fingia que não sabia e, solene, Vamos ao Lello!

O Lello Universal era (ainda é?) um dicionário enciclopédico luso-brasileiro, em quatro volumes, publicado pela Livraria Lello & Irmão, editado no Porto, em Portugal, contendo “159.030 artigos, 10.286 gravuras, 264 quadros enciclopédicos e mais de 311 mapas, muitos deles em cores, 96 estampas fotográficas, 605 reproduções de quadros célebres portugueses, brasileiros e estrangeiros”, assim rezava a folha de rosto.

MATRACA, s. f. (ár. mitraka). Instrumento de madeira formado de tabuinhas movediças que se agitam para fazer barulho e que substituem a campainha nas festas da Semana Santa. Fig. Motejo, troça, vaias. (Ao lado do verbete, um pequeno desenho ilustrativo do instrumento.)

E a conversa prosseguia, animada, viva, bem-humorada, à mão os alentados volumes do dicionário, fonte inesgotável de conhecimento, prontos para uma nova consulta, o pai orgulhoso daquele tesouro em sua modesta biblioteca.

Até que um dia...

Paulo, menino pequeno em plena idade dos porquês, largou no ar em alto e bom som, na hora da sobremesa, a pergunta fatídica, Pai o que é boceta?

Seguiu-se, para constrangimento geral, um interminável minuto de silêncio. Pedro, o irmão mais velho e mais sabido, ria por dentro, à espera do que viria então; não tirava os olhos do pai, Como ele vai se sair desta?, e deliciava-se com o embaraço dos adultos. Já sei, Pedro afirmou de súbito, ingenuamente cínico, o risinho dissimulado na voz, Vamos ao Lello!

O constrangimento aumentou. Paulo, onde você ouviu isso?, perguntou o pai tentando escapar à questão fundamental. Foi o Gui que disse, quando reclamei que a bolinha de gude azul era minha, É a boceta da sua mãe, ele disse, mas eu não sei o que é boceta!

Naturalmente, aquela conversa ia de mal a pior; já não era constrangimento, era um pesadelo, era um estorvo. A mãe escafedeu-se: arranjou alguma coisa para fazer na cozinha. O pai olhava para cima, para os lados, para baixo, sem-graça como nunca, contrariadíssimo. Paulo percebeu que havia algo errado, porém, como não sabia mesmo o significado da tal boceta, apenas esperava por uma resposta. Pedro deleitava-se, desfrutava de cada segundo da situação embaraçosa, era quase uma volúpia, tamanhas a sensualidade, a luxúria, a lascívia, a lubricidade, a excitação.

Num laivo de coragem, na esperança de algum milagre que o tirasse daquele enrosco, o pai resolveu encarar, Vamos ao Lello!

BOCETA, s. f. (cast. Boixeta). Pequena caixa, cilíndrica ou oval, de papelão ou madeira. Boceta de Pandora, ver Pandora.

Outros significados o Lello não registrava, seja por pudicícia lusitana, seja por insuficiência vocabular, para desafogo e alívio do pai. Verdadeiro milagre, ele pensou, mas nada disse. Parou por aí. Pedro também pensou que já estava de bom tamanho, nada acrescentou, valeu o aperto.

Desde aquele dia, quando havia o prenúncio de uma pergunta de Paulo, via-se no semblante do pai um certo ar de preocupação. Para felicidade geral, o Lello estava sempre ali, à disposição, contendo toda a sabedoria do mundo.

Hoje, muitos anos passados, Pedro tem em sua casa uma estante repleta de dicionários, incluindo, visto está, o Lello Universal, em edição bem mais modesta. Ambos, Pedro e Paulo, dedicam-se a escrever palavras e mais palavras e mais palavras.

A cerveja estragada

Da série Infância

Somos vizinhos de nossos avós por parte de pai: esta é uma graça que, desde já, tenho plena consciência de receber, a despeito de meus 6 anos de idade. Basta atravessar o portão que liga os dois quintais e pronto, estou em casa, quero dizer, em casa deles, mas como se fosse minha verdadeira casa. Aqui, com os avós, moram a paz, a tranquilidade, a alegria, o afeto. E o quintal é mais bonito, mais florido.

O avô Breno é sisudo, portanto pessoa de pouco riso, um intelectual à moda antiga, compenetradíssimo, responsável ao extremo, enfim, um homem honrado. A avó Cici, apelido carinhoso para quem se chama Lucila, um doce de mulher. Eu mesmo, o neto predileto dela.

O avô é funcionário aposentado da prefeitura, a avó, funcionária da Caixa Rural, uma espécie de banco do interior; ambos vivem de parcos rendimentos e não conhecem o que é luxo, nunca conheceram, a vida regrada, contada, calculada na ponta do lápis, sempre em ordem e passada a limpo. Não pode haver desperdício de qualquer espécie. Não há sobras de comida. Um dos raros momentos de altercação entre a avó e Maria, a cozinheira desde sempre, e que ajudou minha mãe com as tais fraldas que nunca secavam quando eu nasci, ocorre quando Maria alimenta o gato Chaninho com iscas de carne de primeira que será servida no almoço, Um absurdo de desperdício, resmunga Cici. As más línguas chamam os velhos de sovinas.

Porém há um outro tipo de economia que impressiona ainda mais o menino, a economia de palavras. Breno e Cici são ambos discretíssimos! Não se ouve em casa deles um vislumbre de maledicência, um triz de diz-que-diz-que, a fofoca mais ingênua ou inocente; antes o discreto silêncio. Fora os assuntos proibidos, jamais mencionados, como por exemplo qualquer coisa relacionada a sexo. Sobre religião, apenas o avô fala, crente que é, espírita kardecista, estudioso da doutrina; a avó, que não crê, permanece em respeitoso silêncio, nem-que-sim-nem-que-não. Uma filha deles, minha tia, morreu ainda jovem, em circunstâncias misteriosas para o resto da família, assunto jamais ventilado, insondável enigma, caso em que reina silêncio mais profundo que o silêncio do próprio túmulo.

Mas não há opressão, tormento, tortura, mortificação, martírio ou cilício. Há paz nesta casa, e aqui eu me sinto em casa. Tanto que, nas manhãs quentes de domingo, Cici gosta de tomar uma cervejinha gelada. Eu, rente, na expectativa de um guaraná. Maria prepara então um torresmo, um alho frito, um naco de linguiça, quando não é dia da especialidade da casa: pastel! E que pastel! Nunca em tempo algum ou em qualquer lugar se come pastel igual, frito em banha de porco, de carne, queijo, frango ou palmito!

Pois neste domingo, perto das 11 horas da manhã ensolarada faz um calor úmido e grudento nos sopés da Mantiqueira; Cici abre a geladeira, retira a cerveja e o guaraná, abre primeiro o guaraná, visto está, e depois abre a cerveja. Ao despejá-la no copo já se nota algo errado, ela não espuma, não há gás, não há bolhas, parece turva, definitivamente está turva, a avó resolve prová-la mesmo assim, desapontada, sem acreditar no que está vendo: a cerveja está choca! Podre, estragada, cheirando a mijo de égua, Um absurdo de desperdício, mas isso não fica assim, Pedro, corre na Petisqueira, diz que a cerveja está estragada, pede pra trocar, fico aqui esperando.

Pedro assim faz, e com certo orgulho, menino virtuoso, merecedor da confiança da avó, numa empreitada de muita responsabilidade, afinal trata-se da sagrada cerveja dos domingos, ainda mais naquele calorão. A Petisqueira fica na praça central, casa de certa reputação pela antiguidade, onde se vende toda sorte de frios, enlatados, bebidas, etc., a uns 15 minutos de caminhada a passos curtos, que curtas são ainda as pernas de Pedro, mas ele há de chegar lá. E chega, Moço, a cerveja está estragada, minha avó pediu para trocar. Pedro precisa ficar na ponta dos pés e esticar o braço para conseguir colocar a garrafa no balcão. O balconista, mulato de 90 quilos de peso, quase 2 metros de altura, olha para o menino com espanto, talvez sua inteligência, idade mental ou coisa que o valha seja comparável à do menino, olha com o ar de quem também não está acreditando no que está vendo, O que?, Moço, a cerveja está choca e minha avó pediu para trocar. O balconista olha para o menino, Pedro olha para o balconista. A caixa de som da Petisqueira toca uma daquelas músicas de faroeste utilizadas para indicar a iminência do duelo entre bandido e mocinho, para ver quem saca mais rápido do revólver, quem é mais rápido no gatilho, quem vai morrer, quem vai viver.

O balconista pega a garrafa, despeja na boca o líquido turvo pelo gargalo, sem interrupção, em goles sucessivos, esvazia a garrafa, bate com a garrafa no balcão, arrota com estridência, relincho, grasnadela, e, definitivo, proclama, Está ótima!

Pedro também não acredita no que está vendo e ouvindo: foi-se a prova do crime, a garrafa está vazia, não há mais cerveja, boa ou estragada, não há mais o que dizer, o que argumentar; num átimo Pedro percebe que ali termina aquele episódio de sua vida, que a experiência fala por si, que há uma espécie de frustração irremediável, e que, portanto, para o que não tem remédio, remediado está. Dá meia volta sem dizer uma palavra, volta macambúzio para casa, para casa da avó.

O que vai dizer à avó? Como explicar o acontecido? Como justificar-se? No entanto, o menino não se sente culpado, apenas impotente diante da situação, Não há o que eu pudesse ter feito naquelas circunstâncias, uma verdadeira fatalidade ter deparado com aquele homem sem qualquer paladar, insípido, insosso, dessalgado, tão falto de sabor, pena que Pedro ainda não conheça a palavra ageusia, que tão bem se aplica. Pedro pensa com seus botões, Lá se foi a prova do crime, e secretamente torce para que o balconista tenha uma bruta caganeira com a cerveja estragada.

Ao chegar, diante da avó, Pedro relata tim-tim-por-tim-tim o acontecido, sem tirar uma vírgula e sem acrescentar uma vírgula, calmo, confiante, amparado pela intimidade e pelo amor que ambos sentem um pelo outro, ele e a avó; no entanto, sério, compenetrado, responsável, enfim, um menino honrado -- aprendera com o avô.

Cici ouve atentamente seu neto, deixa que o menino fale sem interrompê-lo, calma, atenciosa, encorajadora, um doce de mulher -- embora pertença à classe dos que não creem --, e diz apenas, tocando de leve o ombro de Pedro, Vamos tomar seu guaraná.