A que viemos?

Viemos para soltar a língua e dar asas à imaginação: dane-se o leitor!

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Surto

Suzete amava os livros, não podia escrever, temia revelar sua loucura íntima, ganhou um concurso de redação sob pseudônimo, bebeu um gole de pálinka, num surto de tranqüilidade subiu ao palco e jorrou lucidez.

Cláudia Carneiro
dezembro/2009

Soneto I (da desesperança)

Quando do amor se perde a medida?
Viver à espera do amanhã lá fora,
viver instante, já que importa o agora.
Seguiremos, sem medo dessa lida?

O tempo tece o sonho dos amantes
que a sua própria mão desfaz, desata.
Pois enquanto uma planta, a outra mata,
tornando mágoa o que era paixão, antes.

Se deixamos que o tempo aconteça,
que venha a chuva, mude a estação,
mas cuide que o amor não adoeça.

Pois no vácuo entre o tudo e o nada,
no hiato da descrença e da razão,
há liga entre a partida e a chegada.

Araci – uma história de ciúme

Pavaroti e Araci eram galináceos índios e, portanto, selvagens. Podia-se dizer que viviam suas vidas moderadas de maneira feliz, todo dia acordavam às 4h30 e a partir de então seguiam religiosamente a rotina, até o cair da tarde às 17h30, quando se empoleiravam. Pavaroti cumpria com sua função de marido satisfatoriamente, pelo menos três vezes ao dia. Passavam o dia juntos: onde ia Pavaroti, Araci seguia; ele abria rastros no chão para ela ciscar, ela catava os piolhos dele, limpava suas penas com muito esmero. Sim, podia-se dizer que eram felizes. E viveram assim, repetidamente, da mesma forma todos os dias, por algum tempo. Até que tudo mudou.

Era um dia de muito sol, o tempo estava seco e toda vez que Pavaroti abria um rastro no chão para Araci ciscar subia uma nuvem de poeira que encobria parcialmente a visão dos limites do galinheiro, este bastante espaçoso para o casal e, de tempos em tempos, a prole, os pintinhos amarelinhos. O inusitado ocorreu neste dia em particular, o dia em que tudo mudou. Abriu-se o rastro, subiu a poeira, mas quando a nuvem baixou, a grande surpresa, que quase matou do coração tanto Araci quanto Pavaroti, cada um por motivo inverso (como se sabe, o coração dos galos e galinhas são bem pequenos, o que os torna suscetíveis à morte com pequenas mudanças, de qualquer gênero e grau).

A nuvem de poeira uma vez dissipada revelou duas galinhas caipiras, uma branca bastante carnuda chamada Bete, e outra bege pintadinha, magra porém jeitosa, novinha, que por isso mesmo ia pela alcunha de Sinhá Moça. As duas ficaram estáticas por cerca de três minutos, de certo tentando imaginar qual seria o seu destino. Pavaroti e Araci também demoraram três minutos, não mais não menos, para determinar o futuro das novatas. Para Araci, inimigas; para Pavaroti, concubinas.

O estresse reinou lado a lado com a satisfação plena durante sete dias. Raivosa, selvagem, a índia Araci arrancava penas e botava as frangas pra correr, enquanto Pavaroti deleitava-se com um novo gozo. O ciúme de Araci dificultava as investidas de Pavaroti, o que o deixava exausto no final do dia e, por isso, incapaz de realizar plenamente suas obrigações maritais para com Araci. Isto só contribuía para deixar Araci ainda mais frustrada, o que por sua vez cansava ainda mais o galo e assim por diante.

No oitavo dia, tudo mudou de novo. O tempo estava mais seco e a nuvem de poeira provocada pelo rastro do galo estendia-se mais e mais alta. Nesta altura a poeira nem assentava mais, quando baixava um pouco o galo já estava a levantar nova poeira, até porque agora tinha três vezes mais galinhas a cuidar. De modo que se via tudo bastante turvo, sem definição, o que ocasionalmente foi um alívio para Araci, quando era confundida por uma das novatas e recebia a divina graça do gozo do marido. Até que suas chances de ser confundida diminuíram consideravelmente.

Quando a poeira deu breve trégua, as novatas haviam se multiplicado num passe de mágica e duas viraram quatro – havia mais duas novatas, mais duas concorrentes no galinheiro. Araci cocoricou de raiva, não podia acreditar em tamanha desgraça. No exato mesmo momento, Pavaroti quase desmaiou de deleite, suas chances também haviam se multiplicado; desgraça de uns, alegria de outros. Glória, loira e razoavelmente carnuda, e Áurea, de pelagem exótica, que se orgulhava de ter vencido um concurso de top chicken, agora habitavam o mesmo galinheiro, não mais tão espaçoso, mas satisfatório o bastante para as novas novatas, em especial Glória, que tomou um gosto particular pelo amante.

Sete dias se passaram e todos acreditavam que era apenas uma questão de tempo até que Araci cedesse. Afinal, afastar não uma mas quatro galinhas, no pior sentido da palavra, era tarefa árdua e Araci começava a mostrar sinais de emagrecimento e exaustão. Até que tudo mudou, mais uma vez, acreditem se quiser. Sim! A visão empoeirada mais uma vez abençoou Pavaroti, os deuses favoreciam-no, com uma nova diferença: após três contagens e cinco piscadelas Araci confirmou que agora havia não duas, mas três novas impostoras, três novíssimas novas novatas – Antonia, Pipa e Lolita. Foi obrigada a refletir: a mudança era agora sua rotina, para o bem ou para o mal.

Então fez o que uma galinha pode fazer, roubou os ovos das sete concorrentes e botou a chocá-los, dezesseis ovos ao todo, dos quais nasceram sete pintinhos amarelinhos que naturalmente chamaram Araci de mãe. Os pintinhos seguiam a mãe em fila indiana onde quer que ela fosse. Formavam uma barreira ao redor de Pavaroti, dificultando sua dança do amor com as novatas. Este relutou por um tempo com os pintinhos, mas na medida em que estes cresciam, crescia também a barreira e a dificuldade em alcançar as frangas, até que o inusitado ocorreu, novamente: Pavaroti começou a mostrar paternal interesse pelos infantos. Gradualmente, tornou-se um bom pai, atencioso e dedicado. E sua nova proximidade com uma, uma galinha apenas, Araci, fez crescer nele um novo interesse, mais forte do que nunca, renovado. Voltou a visitar seu ninho...

Então, uma a uma as novatas sumiram, em um passe de mágica. Araci nunca descobriu como elas apareceram e certamente não sentia necessidade em saber como e por que sumiram tão misteriosamente.

Araci vingara-se.

Paula Vianna

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A morte do escritor

Soube naquela noite, a notícia vinda do Jornal Nacional que ele acompanha religiosamente com o pai. Do escritor sabia apenas que era um “grande homem das letras”, como explicou o pai; de proximidade entre o ele e o venerando senhor, o fato do pai chamá-lo carinhosamente de “menino das letras”, dado o interesse que o garoto sempre manifestou pelas palavras.

A intuição do menino lhe dizia que essa morte não era uma qualquer, mas a de um homem que, em algum momento luminoso de sua vida, fora tocado, como ele próprio, pela magia fulgurante da enunciação. Andrezinho sentiu que morrera alguém de sua estirpe, de sua família espiritual, um senhor que tinha estranhamente algo de amargo em seu nome.

O menino conhece a palavra “estirpe”. Descobriu-a lendo um comentário sobre o filme Robin Hood no caderno de cultura do jornal que o pai assina e compartilha com o filho, antes mesmo de assistir a película em 3-D no cinema do bairro. No jornal, o crítico dizia que o filme era sobre a saga – outra palavra que Andrezinho aprendeu naquela leitura – de alguém inconformado com as injustiças, e que esse bravo homem fazia parte da estirpe dos heróis. A palavra ecoou na mente do menino das letras, que a subvocalizou, como costumava fazer com toda palavra nova que descobria, para poder ouvi-la pela primeira vez: estirpe, murmurou. Uma palavra grandiosa, tal como deve ter sido o herói cujo filme iria assistir. O menino gugleou à procura da palavra inédita e encontrou: origem, descendência, linhagem, raça, casta.

Pois então. O senhor português, morto de velho, aos 88 anos, era de sua estirpe, raça dos homens que gostam das palavras. Devia de ser muito sabedor de tudo que dissesse respeito à língua portuguesa, porque seu pai havia dito que o escritor amava a língua-pátria, era português e porisso mesmo falava daquele jeito estranho que mais parecia uma brincadeira da lingua do p. Aproveitando um dos sinônimos garimpados no google, o menino pensou que ele, Andrezinho das Letras, poderia ser um descendente, meio que distante, talvez um arquineto do velho escritor amargo, e o parentesco adivinhado causou-lhe uma súbita emoção. Estariam ligados, mais do que por laços distantes de consanguinidade, por um amor embriagado pelos substantivos, adjetivos, verbos, preposições e tudo o mais que compartilhavam por serem filhos da mesma língua-mãe? Suspeitou que deveriam possuir a mesma sintaxe e semântica do ser. Tudo isso Andrezinho pensou mas, é claro, não ainda com essas palavras, que algumas delas ele somente virá a conhecer no futuro, após outras tantas investidas ao google.

No dia seguinte, os jornais noticiaram amplamente o desaparecimento do escritor. Andrezinho pediu ao pai que selecionasse as matérias que falavam sobre o seu conterrâneo, pois assim Andrezinho se sentia, filho que era da mesma terra do senhor amargo. Leu tudo o que lhe caiu às mãos: detalhes biográficos, relação das inúmeras obras publicadas, comentários de pessoas que viveram ao lado do ilustre autor, suas últimas palavras. Chamou-lhe a atenção uma coluna que tinha um nome que ele ainda não conhecia, o que, na verdade, não era um grande problema mas, antes, um estimulante desafio para o pequeno menino das letras: nada que uma rápida consulta à internet, ou uma mais sofisticada consulta ao dicionário de língua portuguesa que seu pai mantinha disponível sobre a mesa da biblioteca, não resolvesse. Percebeu que o jeito de quem escrevia nessa coluna, enaltecendo a figura do escritor morto – quem sabe alguém que também fazia parte da estranha família – tinha uma grande proximidade com seus próprios sentimentos. Começou a tramar que desejaria fazer algo semelhante e expressar a gratidão pela descoberta do notável ancestral agora morto. Continuou a ler avidamente os diversos artigos que encontrou no jornal.

Naquele dia à tarde, lá vai Andrezinho para a escola. Aula de redação que, como sabemos, é a matéria mais apreciada pelo menino das letras. Dona Cora inicia a aula referindo-se, é claro, ao desaparecimento do velho escritor, fala um pouco sobre sua vida, cita alguns de seus romances publicados, isso porque nem todas as crianças já ouviram falar daquele senhor, e pede que as crianças escrevam um pequeno texto a respeito. Andrezinho excita-se com a ideia de poder falar bem do velho senhor amargo, utilizando suas recentes descobertas linguísticas, e escreve rapidamente sobre a folha do caderno: Necrológio de José Saramago, por André Junqueira Alves, também conhecido como Andrezinho das Letras.

Roque Tadeu Gui



domingo, 20 de junho de 2010

A bola de Pedro, a bola de Paulo

(Da série Infância)

Podia haver felicidade maior para dois meninos que um campinho de futebol nos fundos do quintal de casa? Era só pular o muro e pronto: a bola debaixo do braço, as traves de verdade, pouca grama e muita terra batida, nenhuma marcação nas laterais, nada de grande ou pequena área, a marca do pênalti havia, mas era sempre um campinho de futebol.

Havia um senão -- há sempre um senão! Bem ao lado do campo, em toda a sua extensão, separado apenas por um bambual que segurava o barranco, corria um ribeirão de águas turvas, barrentas, fétidas, receptáculo de esgotos e latrinas da cidade de interior com saneamento precário. Pois o pacato curso d’água, de nome Ribeirão dos Alves, era afluente -- e ainda é, pois não se muda o curso das águas por qualquer dá cá esta palha -- do caudaloso e imponente Paraíba do Sul, que empresta seu nome a toda uma região de importância histórica e econômica, o Vale do Paraíba.

Estes detalhes pluviográficos justificam-se: em tempo de chuvaradas e enchentes, na estação das cheias, enchendo o Paraíba, transbordavam também seus afluentes, que se tornavam perigosos, nada parecidos com os insignificantes ribeirões, então promovidos à categoria de rios, mas que ainda corriam espremidos pelas margens de sempre, margens de riacho, estabelecidas pela imprudência dos homens ao construírem suas moradas, a eterna luta entre continente e conteúdo.

Mas vamos à nossa história. Era Natal: Pedro e Paulo ganharam uma bola de couro, bola de verdade, toda branca, com aquele furinho por onde se enfiava o bico-de-encher-bola conectado à bomba-de-encher-pneu-de-bicicleta. Para enfiar o bico, os meninos usavam cuspe: lubrificante universal, visto está! A bola cheia, os dois irmãos foram para o campo, numa tarde chuvosa, o céu carregado e cinzento -- céu azul para Pedro e Paulo --, o Ribeirão dos Alves enfezado, comedor de barrancos, mais barrento do que nunca.

Como eram apenas os dois a desfrutarem daquele momento especialíssimo, a brincadeira era simples: chutes a gol: um chutava, o outro pegava, se pudesse; 10 chutes; depois trocavam de posição; ganhava quem marcasse mais. Até que, numa rebatida meio desajeitada, a bola tomou o rumo da lateral proibida, passou incólume pela estreita falha no bambual, rolou barranco abaixo, caiu no ribeirão, para desespero dos meninos. Tudo, menos perder aquela bola! Foi o que pensaram, nem pensaram, brotou na cabeça de cada um, veio das tripas, instinto, vida ou morte.

Ambos correram para a margem, estupefatos, a bola já na correnteza. Pedro não titubeou: entrou na água suja, enfrentou a correnteza, precisava salvar a bola. Paulo ficou na margem, torcendo, Pedro precisava daquele apoio, o irmão sempre junto, torcendo.

Juntou gente na ponte sobre o ribeirão, aquele menino tão pequeno enfrentando aquela enchente, atrás de uma bola; podia se afogar! Alguém conhecido da família foi chamar a mãe -- a casa ficava ao lado da ponte, do ribeirão e do campinho --, que chegou esbaforida. A mãe gritava, histérica, Já pra dentro já pra dentro os dois de castigo.

E os dois foram para o quarto, de castigo. Conversavam, falavam baixo, para não chamar a atenção da mãe, riam baixinho, de tanta felicidade, a bola fora salva, mais um pouco e chegava ao Paraíba, lá onde o mundo acaba. O castigo -- que castigo?

Pena que a mãe não pôde saborear aquele momento: a coragem dos filhos, a importância de uma bola de couro.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sinceridade

Sentado no cadeirão, a espera do almoço especial, em meio a toda família e diante do convidado de honra, Pedro não tirava os olhos da jarra de suco, que via esvaziar-se pouco a pouco, a mãe servindo um a um os presentes em volta da mesa, até que não se aguentou e, indignado, bradou com voz decidida e firme de menino em seus três anos de idade:

-- Dacapoco acaba a vitamina e eu fico sem nada!

segunda-feira, 7 de junho de 2010

C de Clareira

A palavra mais bonita da língua portuguesa não é saudade, é clareira.

Claro está que se origina do latim clarus, e tem como derivados aclaração aclarador aclarar clara clarão clarear clareza claridade clarificação clarificar clarividência claraboia esclarecer esclarecido preclaro, findo aqui este esclarecimento.

Clara Clarice Clarisse Clarissa Clarinda são nomes de mulher -- que privilégio! -- com a mesma origem.

Claro é o que clareia, que alumia, que é brilhante, luminoso, resplandecente. Mas é ainda o que se distingue bem, que é penetrante, perspicaz, nítido, evidente. Quando juntamos a noção de espaço a todos esses significados, surge então a ideia de clareira. Em bosque, mata ou floresta, é o espaço onde as árvores rareiam ou faltam por completo; clarão, claro, limpo.

Se na dantesca floresta escura surge uma clareira...

Se na dantesca floresta escura surge uma clareira, posso então morrer e ali ser sepultado. Se na dantesca floresta escura surge uma clareira, posso então viver e ali ser coroado.

Clareira é lugar de descanso. Lugar de relva macia onde a luz do sol penetra livremente e alimenta as flores-do-campo regadas por um riacho de águas claras. Clareira é lugar de matar a sede.

Clareira não rima com poesia porque não precisa: é a poesia. Se o viajante, depois de árdua caminhada, encontra uma clareira, e se ele carrega na mochila um livro de poemas, ele se deita na macia relva, ao som do riacho, e lê:

caminhada

na dantesca

floresta escura

uma clareira -- você

Se o viajante, depois de árdua caminhada, encontra uma clareira, e se ele carrega na mochila um livro de orações do santo Bandeira, ele se deita na macia relva, ao som do riacho, e lê:

Santa Clara, clareai


Estes ares.


Dai-nos ventos regulares,


de feição.


Estes mares, estes ares

clareai.”

Clareira é o espaço que aclara, limpo geral, e Bandeira bem que podia ter escrito:

oração do vivente

Santa Clara

clareai, mostrai-nos

uma clareira

Eis porque eu penso que clareira é a palavra mais bonita da língua portuguesa.

domingo, 6 de junho de 2010

B de besteiras

Nem prosa nem poesia. Abaixo, sim, um bando de bobagens.

Besta, boba, burra! burra, mas... é bonita! Baltazar, que isso? bestou de vez depois de erado, é? Baltazar se diverte, brinca com os bicos e beiços de Beatriz, gosta de evidenciá-los, sabedor de que beleza só é fundamental em poesia de botequim. Para o amor, um nariz torto, um olho meio caído é básico, quase necessário. Só não passa bafo de bosta. Aí já é demais! Beleza também não se barganha com ignorância. Basta de loura burra!

Baltazar boceja. É um sujeito bom. Um pouco solitário, é bem verdade. Não gosta de barulho nem boatos. Baniu de sua vida os broncos, brutos e os boçais. De sua biblioteca, os best-sellers. Bacharel no fogão, brinca que abrirá um bistrô, só de brejeirice, pra ver Beatriz bufar: No meu bistrô entra tudo, menos bandido e banana, que é comida de bundão. Puro blefe, pois em se tratando do baixo continente, tudo o que Baltazar bendiz de sua vida de aposentado é poder botar o seu numa banheira e deixar que o mundo lá fora escorra por um buraco de bueiro.

Absorto no banho de banheira, pensa em bestialidades. Recompõe-se, meio banzo, busca lembranças infantis, brincadeiras no velho Brejo Alegre, assim batizada sua cidade-natal antes da chegada dos barões do café. Sim, Baltazar é um bem-aventurado filho da terceira cidade mineira cujo nome começa com B: Berlândia, Beraba e a Bosta de araguari. (De novo b de bosta?) Isto, bosta. Verbete bom de balbuciar: booosta, b-b-bosta, bostão, bosta rala, bosta n’água. Bosta! Merda, cocô, porcaria, coisa mal feita, titica, não, não! Bosta que é bacana, tem atitude. O cara te chama de bicha e você é bom de briga. Ele é um babaca? Não, ele é uma bostinha de barata! Vale nada!

Chega de baboseiras. Na balbúrdia de lembranças, surge Beatriz. Beija-me a boca, Baltazar! belisca meu braço, me bate, vai, uma boa bofetada! Adorava arrancar-lhe a blusa e levar Beatriz à beira da loucura. De boazuda não tinha nada, mas era a sua boneca.

Que foi, Beatriz? por que você geme tanto? tá bom? Continua, Bal, tá bótimo! As mãos de Baltazar deslizam pelas bordas de Beatriz, faz um atalho na barriga para chegar ao destino desejado, a bunda abaulada de sua amada. Ensaia um tapinha e Beatriz começa a gritar, berrar mesmo. Onde desativo a bomba? desespera-se Baltazar, já broxado e abestalhado, quando enfim acorda com o telefone urrando. Antes de bandear-se para o quarto, aos cambaleios, bebe mais um gole de Baileys, tropeça na beirada da bacia, esbarra na bandeja de bebidas, se esborracha sobre a bromélia, braveja contra Baco. Tarde demais. Só de birra, Beatriz, comissária de bordo da BRA, havia deixado uma mensagem blindada: Bê-eu bê-a bê-mo bê-vo bê-cê. Ganhei um bilhete para a Bósnia. São poucas horas até a Bélgica. Bora comigo para Bruges?

Cláudia Carneiro

sábado, 5 de junho de 2010

A boceta de Pandora

Buceta ou boceta? A dúvida se implantou na mente de Andrezinho aos... quantos anos teria então, talvez oito ou nove?

Antes do acontecido, o menino já ouvira a palavra proibida, geralmente dita pelos pequenos comparsas, seus amiguinhos de rua, de campinho, de punheta e troca-troca. Escreviam onde podiam a palavra, esculpida com o canivete, na porta dos banheiros, nas carteiras da escola, nos bancos do jardim que ficava em frente à escola paroquial, nos muros da vizinhança: BUCETA.

Na imaginação precoce do garoto, buceta era o nome que se dava ao que seria o equivalente a pinto, com a diferença de que este ele conhecia muito bem, digamos que em “primeira mão”, se é que o leitor me entende! A outra era um completo mistério, somente conhecida em sua versão infantil quando Anrdezinho via a irmã menor que, ainda sem pudores, andava pelada pela casa. Mas a dela parecia mais uma boquinha de sapo! Como seriam as bucetas maduras? A questão insólita atormentava a mente do garoto.

Andrezinho tinha uma vizinha adolescente, nos seus 15 ou 16 anos, pela qual era perdidamente apaixonado. Chamava-se Eleonora e era filha de um comerciante judeu, o único que Andrezinho já conhecera; a maior parte dos vizinhos era descendente de italianos, espanhóis e portugueses. Talvez por isso mesmo, Eleonora, com sua pele clara e feições delicadas faziam o menino sonhar. E não poucas vezes, ele ficava a devanear a respeito de como seria a buceta da vizinha. Os comparsas diziam que a adolescente tinha pelos na buceta, “pentelhos” como diziam, intensificando o mistério e a curiosidade do pequeno André que passava horas imaginando o que faria no dia em que se deparasse com uma.

O ocorrido se deu no início do terceiro ano do curso primário – era assim que naquela época se chamava o curso fundamental – quando Andrezinho recebeu o livro de português que seria usado naquela série, e português era a matéria que ele mais apreciava, haja vista o seu interesse pelas palavras. Como fazia em todo início de ano, folheava ansiosamente as páginas do livro, examinando-o e antecipando as leituras que faria ao longo do período. Cada lição era iniciada por um excerto de texto literário, acompanhado por um vocabulário que apresentava as palavras novas e mais uma parte gramatical, um tanto menos interessante para Andrezinho pois que versava sobre uso de ponto, vírgula, acentos e coisas que tais. Ele gostava mesmo era das histórias.

Pois bem, aconteceu. Lá pelas páginas trinta e poucas, Andrezinho se deparou com um texto intitulado “A Boceta de Pandora”. Boceta ou buceta?, retornou a dúvida à mente do pequeno André. E num livro de escola, não num “catecismo”! – este era o nome que os garotos davam aos livrinhos de sacanagem que exibiam cenas sexuais desenhadas sem qualquer esmero artístico e que passavam de mão em mão, causando alvoroço na molecada.

Devorou o texto e em seguida, como já era de hábito, escreveu um pequeno resumo do que havia entendido:

Nos tempos antigos, lá na Grécia, existia um deus muito foderoso chamado Zeus. O cara ficou muito bravo porque um de seus filhos, sujeito chamado Prometeu, roubou um tanto do fogo do Pai e deu de presente aos homens que a partir daí puderam fazer muitas coisas. O manda-chuva pra ferrar de vez com os humanos preparou uma armadilha: pediu a um cupincha, um tal de Hefesto, que fizesse uma mulher muito bonita, daquelas de fechar o comércio – como meu pai costuma dizer – tipo assim uma Brigite Bardot (vi uma fotografia dela de maiô em uma revista).

Esse mulheraço – chamavam ela de Pandora porque tinha todos os dons e, certamente até pelos na buceta – era irresistivel para qualquer mortal. Zeus, o cara, mandou Pandora como presente para Epimeteu, irmão de Prometeu, nosso herói. Epimeteu, que era um cara da pá virada, babou quando viu a moça, apesar do irmão ter lhe advertido para não aceitar presentes de Zeus. Mas fazer o quê diante de tanta beleza! (Andrezinho fez uma pausa para lembrar-se da vizinha).

Pandora tinha um vaso – uns dizem que era uma pequena bolsa, daí boceta – no qual Zeus tinha colocado todos os males do mundo. Certo dia, Pandora, certamente a mando do Chefe, abriu o vaso e pronto! A esbórnia aconteceu: miséria e doenças pra todo canto. Pandora fechou o vaso a tempo de impedir que a esperança, que ficou presa no fundo da boceta, escapasse também. Deve estar lá até hoje.”

Andrezinho concluiu suas anotações e estava atônito. Dias e noites meditou aobre o sentido dessa história. Pensou na atitude de Zeus – comparou com o pai e concluiu que o deus era bem pior – que não queria que os homens conhecessem o fogo, pensou na coragem de Prometeu, esse sim um grande herói, no confuso Epimeteu que entrou na conversa de Pandora, e na própria Pandora, com um misto de desejo e pavor. Mulher misteriosa, igualmente “foderosa”. E ficou pensando ainda sobre a relação das duas palavras que agora conhecia: buceta, presente em sua vida mundana, e boceta, oriunda de seus estudos eruditos. Pressentiu nexos que só viriam a se elucidar décadas depois quando viesse a abraçar o ofício de psicanalista. Sentiu-se menos ignorante e com ávida expectativa pela aula de redação com Dona Cora.

Na sala de aula, professora Cora, que sempre valorizou a criatividade dos alunos e procurava estimulá-la sempre que possível, pede aos alunos que destaquem uma folha de seus cadernos e registrem o primeiro pensamento de uma histótia que gostariam de contar. Andrezinho, entusiasmado com suas recentes descobertas e com certo ar de presunção por ter se adiantado nas leituras do livro texto, escreve: “A Boceta de Eleonora”. Não se apercebe do lapso que somente virá a compreender anos depois, homem já crescido. Não temos noticia sobre a reação da professora Cora às ideias criativas de Andrezinho.

Roque Tadeu Gui


menino escritor

pediram-me uma escrita barroca

não saiu nada

só sei escrever assim

simplezinho


escrevo sobre banalidades

meu jardim

meus cães

minha solidão

(nem de vírgulas preciso)


escrevo também sobre infância

na tentativa de manter vivo

o menino que resta em mim

este menino é quem assim escreve

simplezinho


quando o adulto escreve

(escrevo para lidar com minha dor)

pode surgir aqui e ali

algum pedantismo exibicionista

coisa que o menino desconhece

em sua incorrigível

ingenuidade de menino


pediram-me uma escrita barroca

não dei conta

só sei escrever assim

menino simplezinho

sexta-feira, 4 de junho de 2010

S de saudade

sol sem brilho
arco-íris sem cor
folha seca
doce sem açúcar
dia escuro
noite fria
abraço ao vento
beijo não dado
conversa solo
eternidade

J de jogo

jogo de cartas
jogo de sorte
jogo de damas
jogo de prendas
jogo de futebol
jogo de azar
brincadeiras
diversão
partidas
jogo de amarelinha
jogo de moleque
jogo de infância
saudade!

O apartamento do nono andar

Meu nome é Sebastião de Pádua Meira Gallo, afetivamente chamado de Tião Gallo pelos mais íntimos. Tenho oitenta e três anos, uma saúde de dar inveja a qualquer atleta. Moro sozinho no apartamento 312 de um prédio de doze andares, perto do centro da cidade de São Paulo. De vez em quando, recebo a visita de uns parentes, de um ou dois amigos, e de alguns vizinhos. Moro nesse mesmo apartamento há mais de vinte anos e, durante todo esse tempo, deparei-me com inúmeras situações inusitadas, relacionadas à vizinhança. Conheço todos os moradores, exceto um casal que recentemente mudou-se para o apartamento 905, e que vem me tirando o sono. Não porque façam barulho ou sujeira, nada disso! Tiram meu sono justamente porque são estranhos e silenciosos. Já tentei me aproximar, conversar sobre amenidades, mas o casal parece não gostar dessas gentilezas. Certo dia, tomamos o mesmo elevador, subindo para nossos apartamentos, e notei que traziam um enorme embrulho, lacrado com fitas adesivas transparentes. Fiquei muito curioso, mas não sabia o que fazer para descobrir o que era aquilo. Então, ofereci-me para ajudar, mas o casal rapidamente negou a minha ajuda. Achei aquilo esquisito e decidi que começaria a investigar. Alguns dias depois, encontrei-me com outro vizinho, o Silveira, e começamos a conversar. Conversa vai, conversa vem, e Silveira acabou dizendo que já havia percebido algo estranho acontecendo no nono andar. Não tivemos dúvida de que o melhor a fazer era irmos conversar com o síndico. Foi o que fizemos. Seu Paschoal, o síndico, um homem de uns sessenta e cinco anos, nos recebeu muito bem. Pediu-nos que aguardássemos um pouco, pois iria vestir-se para descer conosco até a sala da administração do prédio. Quando descemos, seu Paschoal lamentou, mas informou-nos que não estava autorizado a falar sobre os atuais ocupantes do apartamento 905. Ficamos espantados. Como? Por quê? Que mistério era esse? O que estaria escondendo? Rapidamente, Silveira e eu nos levantamos. Exigíamos explicações, afinal, pagávamos nossos condomínios em dia, éramos bons moradores, etcetera e tal. Seu Paschoal manteve-se fiel à gentileza que lhe era peculiar e disse que, em alguns dias, tudo se resolveria e a paz retornaria ao nosso prédio. Duas semanas depois, numa terça-feira, por volta das dez horas da manhã, nosso prédio foi alvo de assédio da polícia e de vários curiosos. Soubemos, então, que um seqüestro de morador do prédio vizinho havia sido resolvido, graças à brilhante diligência de um casal de detetives, os moradores do apartamento 905!

Genivaldo

Poderíamos dizer que Genivaldo fosse um sujeito bem ajustado à vida. Aparência simplória, fala mansa, poucas palavras, gestos comedidos. Genivaldo trabalhava como montador de veículos em uma grande montadora da cidade e morava de aluguel a poucos metros da Fábrica, em um apartamento de um quarto, no alto de uma floricultura. Parecia de bem com a vida.
Há uns bons anos, Genivaldo vinha nutrindo certa admiração por uma colega de trabalho, mas este era um assunto que ele fazia questão de manter sob sigilo. Nem Eleonora, a admirada, o sabia.
O que ninguém desconfiava mesmo é que Genivaldo era um sujeito meio esquisito. Na intimidade, vivia atormentado por uma infinidade de “manias”: lavar o banheiro três vezes por dia; contar diariamente a quantidade de camisas, calças, meias e cuecas existentes no guarda-roupa; conferir várias vezes a fechadura da porta antes de sair; seu ritual diário de higiene consistia numa extenuante tarefa que lhe custava três longas horas de execução. A lista de rituais era enorme e bem antiga. Vivia só.
No trabalho, era considerado um funcionário exemplar, sempre eficiente e preciso. Os colegas atribuíam-lhe os melhores elogios. Bom caráter, amigo, respeitava a todos, embora fosse de pouca conversa. Apesar disso, era capaz de entrar em desespero quando alguém insinuava uma possível visita a sua casa. Logo desconversava, inventava uma desculpa e o assunto se encerrava. Sentia que precisava manter tudo sob controle; assim, tinha a impressão de estar bem. Assim era Genivaldo.

Conversa ao pé do ouvido

Percival e Botelho são muito amigos. Uma amizade que já dura pra lá de trinta anos. Estão sempre juntos, embora, nos últimos anos, Percival tenha andado um tanto absorvido pelos cuidados com a saúde, que anda frágil. Botelho é do tipo atlético, assíduo praticante de natação, com disposição para deixar qualquer garoto de vinte anos léguas atrás.
Pois bem, os bons amigos desenvolveram um hábito muito interessante. Toda semana reservam um tempinho para o que chamam de “conversa ao pé do ouvido”; estabelecem um tema, que chamam de “o tema do dia” e conversam sobre ele noite a dentro, num bar perto da casa de Botelho. Varam a madrugada, até que, invariavelmente, Percival cai no sono e Botelho é obrigado a levá-lo para casa. Assim é que os dois amigos permanecem muito animados toda vez que chega o “dia da conversa ao pé do ouvido”, como eles dizem.
Num desses dias, engataram o seguinte diálogo.
- Percival, acho que o tema de hoje será “gentileza”!
- De onde veio esta idéia, Botelho?
- Sabe, hoje eu estava indo ao supermercado e me deparei com uma série de situações que me incomodaram muito. Havia uma senhora tentando atravessar a rua e os motoristas sequer olhavam para ela; um garoto pediu uma informação a um senhor e este sequer virou-se para responder; tentei mudar de faixa inúmeras vezes no trânsito e, numa dessas tentativas, fui sumariamente xingado de “ô, vovô!”; minha filha foi ao banco para resolver uma dúvida financeira e o gerente do banco não deu a mínima para as indagações dela; o filho do meu vizinho colocou um som tão alto que eu mal consegui ficar em casa, temendo que meus tímpanos estourassem.
- Mas Botelho, pelo que você está dizendo, o tema de hoje é “desgentileza”!
- Como queira. É um tema que me aborrece. O que é que está acontecendo, Percival? Onde é que anda aquela gentileza entre as pessoas? Onde é que anda aquela preocupação com o outro? Aquela consideração pela pessoa do outro? O que é que está acontecendo com o mundo, Percival? Será que eu é que estou ficando louco?
- Ô, Botelho, mas vamos pensar, o mundo cresceu, as coisas mudaram, há mais gente disputando um lugar no mundo.
- Mas isto não justifica toda esta falta de consideração, Percival! Dia desses, fui a um hospital público e o que ouvi foi assustador. Havia um senhor sentado na primeira fila de um guichê. Notei que ele estava abatido; parecia cansado. Aproximei-me dele e perguntei o que ele tinha. Sabe o que ele me disse? “Moro só e senti-me triste na noite passada. Aí eu vim pra cá porque sei que aqui receberei alguma atenção das enfermeiras. Sempre que isto acontece, chego aqui cedo, por volta das seis e meia, e fico esperando pra ser atendido. Invento uma dor de cabeça ou uma dor de barriga e garanto uns quarenta minutos de carinho”. Percival, isto me cortou o coração! O que será da humanidade, se para a convivência, um sujeito tem que chegar a este ponto?- É, Botelho, já não basta fazermos a nossa parte, não é? Realmente, o tema que você trouxe é mesmo “gentileza”. Custa ser gentil?

P de puta-que-pariu

Lúcia levantou-se cedo, o marido já havia saído para o trabalho. Acordou os meninos e preparou-lhes o café da manhã, já que a empregada, como sempre, só chegaria mais tarde. Assim que tudo estava pronto, levou-os à escola, como de costume. Marcelo, de 10 anos, havia amanhecido febril, mas ela imaginou que pudesse ser uma reação à vacina que ele havia tomado no dia anterior. Paulo, o de 12 anos, estava sonolento. Cristiano, o de 15, teria prova no primeiro horário e não podia se atrasar. Na noite anterior tinham ido deitar tarde, pois receberam a visita dos avós paternos que, há muito, não viam.
Apressou-se a chegar na escola. O trânsito da segunda-feira de manhã estava difícil, precisou fazer vários desvios além do habitual. Felizmente, tudo certo, os meninos entraram na escola e ela seguiu para mais um longo dia. Já em casa, Lúcia lembrou-se de um pedido de Cristiano: precisava de um jogo de tintas para usar no dia seguinte. Pensou que o melhor a fazer seria aproveitar a ida ao supermercado e comprar as tintas por lá. Foi o que fez.
Ao sair do supermercado, deu-se conta de que havia prometido ao seu orientador de doutorado enviar a ementa de um curso que ministraria em breve. Correu para casa, sentou-se ao computador e pôs-se a trabalhar. Às 11h50 rumou para a escola para buscar os filhos. Marcelo estava indisposto. Deixou Paulo e Cristiano em casa para o almoço e levou Marcelo ao hospital. Depois de medicado, Marcelo disse-lhe que estava com fome. Foram para casa.
À tarde, Lúcia sentou-se novamente ao computador para concluir sua tarefa. Os meninos estavam em seus quartos estudando. Às 15h30, Lúcia lembrou-se de que a empregada havia lhe pedido um adiantamento e que ela ainda não havia efetuado o saque para pagá-la. Correu para o caixa-eletrônico mais próximo de casa e efetuou o saque. A empregada foi embora às 17h, como de hábito.
Às 18h saiu para deixar as crianças na casa de sua mãe, pois queria assistir a uma palestra na universidade às 19h. A palestra estava interessante e se estendeu até 21h. Na volta, com os meninos cochilando dentro do carro, lembrou-se de que ainda precisava fazer algumas coisas em casa antes de dormir e sentiu-se esgotada. Ao chegar em casa, após verificar que os meninos já estavam em suas camas e que tudo estava mais calmo, exaurida, desejou estirar-se no sofá, como nunca faz, e assistir a um programa de televisão. Assim que se acomodou, o marido entrou em casa, retornando do trabalho. Ao vê-la deitada no sofá, diz: “você vai acabar ficando doente, sem fazer nada o dia inteiro, só deitada aí nesse sofá”. Lúcia olhou-o indignada, e, quase sem voz, exclamou: "puta-que-pariu!"

Carta de Totonha

Estimado Senhor Medeiros,
Recentemente, o senhor solicitou-me que lhe enviasse um depoimento a respeito das experiências da minha vida, uma vez que vem conduzindo uma pesquisa acerca da qualidade de vida na terceira idade. Sinto desapontar-lhe, mas sinceramente não me considero uma legítima representante da categoria em estudo, pelas razões que agora passo a expor.
Chamo-me Totonha, quer dizer, Maria Antonieta Guimarães Vasconcelos Ribeiro Duarte. Acabei de completar noventa e dois anos no último dia primeiro. Meu apelido tem uma origem engraçada, certa vez, quando eu era bem pequena, minha família empregou uma cozinheira fanha que não conseguia pronunciar meu nome direito, era um tal de “tonha”, “atonha”, “tonhinha”, que minha mãe resolveu que dali pra frente eu deveria ser chamada de “Totonha”. Enviuvei há alguns anos e tenho cinco filhos, os quais, a propósito, vivem em outras cidades. Falamo-nos com freqüência, são pessoas de bem, duas moças e três rapazes – veja que ainda os considero jovens! – formamos uma família bonita e feliz, com noras, genros, netos e dois bisnetos.
Não pense o senhor que eu seja aquele tipo de velhinha que fica sentada o dia todo a tricotar, assistindo a um programinha água-com-açúcar para o tempo passar. Sinto decepcionar-lhe, mas meu tempo tem sido bem escasso na verdade. O senhor sabe, sempre fui muito namoradeira, quando meu falecido marido era vivo, pensa o senhor que ficávamos em casa?, não!, era um tal de viajar, de andar pela cidade e, cá entre nós, de freqüentar boates – adorávamos dançar e namorar!, O senhor ficará espantado se eu lhe contar um pouco da minha história. Será que o senhor quer mesmo saber? Bem, de todo modo, talvez me seja útil falar algo de toda essa experiência. Quando solteira, tive muitos namorados, eram tantos abraços e beijos, o senhor acredita? Casei-me com dezenove anos, tive meus filhos e quando eles cresceram, o senhor pensa que sosseguei?, não!, comecei a estudar, pois sempre quis ser bibliotecária e nunca consegui devido às exigências dos cuidados domésticos, aí eu fiz um vestibular, já devia estar com uns trinta e poucos anos, fui aprovada, fiz o curso e consegui um emprego bem interessante.
Gosto muito de sair com minha turma de amigos – o senhor não acha que eu tenho amigos?- são uns oito, alguns da minha idade e outros mais jovens. Quando saímos é muito divertido, escuto muitas histórias, rio muito. Sabe, às vezes acho que certos jovens não agüentam o meu pique, logo se cansam e dizem que precisam dormir. Minha filha parece uma velha, vive me repreendendo, dizendo que eu devia ficar mais em casa, que estes passeios já não são mais para a minha idade, que eu pareço muito assanhada. Não dou a menor bola, ela é que parece mais velha do que eu! Meu filho caçula é o maior barato, o senhor imagina que por eu gostar muito de filmes românticos, de vez em quando ele me traz uns filmes “calientes” para eu assistir? Delicio-me com filmes daqueles bons tempos, dos tempos dos cavalheiros, das sutilezas românticas, das aproximações calorosas entre os amantes, das flores matinais, da brisa da manhã acordando-nos após uma noite feliz, à luz de velas. Ah, o senhor há de convir que foram tempos iluminados, cheios de vida, de cordialidade, de brilho, algo que hoje não se vê, não é mesmo?
Poderia ficar aqui escrevendo sobre inúmeros momentos felizes de minha vida no passado, mas opto por lhe falar melhor do presente. O presente é muito bom, tenho uma vida muito feliz, converso, abraço e beijo meus amigos, vou ao cinema, faço lanches divertidos sozinha ou em grupo, caminho pela cidade a pé, encontro antigos conhecidos, coloco a conversa em dia, namoro – claro que não é mais como antes, de forma tão ardente, mas ocorrem umas bitoquinhas-do-tipo-papai-e-mamãe. Sou muito feliz e espero continuar assim até o dia em que tiver que partir.
Como o senhor pode ver, acho que não sou uma legítima representante da categoria “terceira idade” que o senhor vem se dedicando a estudar. Sinto-me na “minha idade”, o que não quer dizer “terceira idade”. Afinal, de que idade o senhor está falando?
Com afeto,
Totonha

terça-feira, 1 de junho de 2010

Maré alta

Pedro, assim que aprendeu a ler, passou a gostar das palavras. Ou gostou delas primeiro, depois aprendeu a ler?

Ele há muito suspeitava da existência das palavras, mas não estava certo de que elas existiam mesmo. Via o pai lendo jornal, sabia o que era jornal, é claro, apenas não sabia o significado de ler jornal. Via a mãe lendo um livro, sabia o que era um livro, claro está, mas não podia compreender o que era ler um livro. De repente, descobre as palavras.

Maior ainda foi a surpresa quando, ainda no jornal do pai, deparou-se com as tais Palavras Cruzadas, um quadrado maior dividido em pequenos quadradinhos, alguns pintados de preto, números horizontais, números verticais, ao lado uma relação de significados: lindo brinquedo!

Gostou que ali não houvesse uma história contada, apenas palavras, e seus próprios significados. Cada palavra, um assunto. Um mundo novo, infinito. Sem contar as abreviaturas: AC, antes de Cristo; DC, depois de Cristo; SP, São Paulo; bonitas e fáceis de lembrar.

Até que surgiu uma palavra complicada! Uma não, duas palavras complicadas, com uma letra cuja pronúncia parecia variar, sem uma lógica clara. Pedro leu, na coluna das Horizontais, e perguntou ao pai-sabe-tudo:

-- Pai, o que é “flucho” e “reflucho” das águas do mar?

O pai disparou estrondosa gargalhada!: -- É fluxo e refluxo, Pedro! É a maré, o movimento das águas do mar, lembra-se das ondas que vêem e vão na praia?

Mas o pai disse aquelas palavras tão amorosamente, com tanto carinho em seu tom de voz, tão professor, que Pedro teve até vontade de chorar. A risada do pai não foi de mofa, não foi de troça, a situação é que era engraçada. Flucho e reflucho? Uma piada, boa piada, e diante de uma boa piada, há que se rir!

Desde então, ao chegar à praia -- o que ele mais gosta na vida! --, ou abrir o jornal e encontrar as palavras cruzadas, Pedro se lembra da maré. Anos depois, aprendeu ainda que, além de seu significado próprio, as palavras guardam também sua carga de afeto.

Carta ao autor

Meu caro senhor,

Atrevo-me a escrever-lhe. O senhor, melhor do que ninguém, sabe que este não é o meu forte; minha lide é a de tão somente contar histórias sem tê-las escrito. Ainda assim, atrevo-me a fazê-lo como um desabafo, se assim posso expressar-me.

Ao longo de minha vida – aquela que me é dada a cada história que o senhor decide escrever – limitei-me a narrar o que testemunhava. Às vezes, contentava-me em descrever os outros personagens, suas feições, seus jeitos e trejeitos, suas manias e desaires psicológicos. Outras vezes, esmerava-me em mostrar o cenário no qual se desenrolava a história. Em momentos mais ácidos, chegava mesmo a emitir comentários críticos sobre o comportamento de meus “cocriados”. Permita-me o neologismo para designar todos aqueles que, como eu, existem por obra e graça dos talentos e esmeros do senhor. Peço-lhe desculpas já, de antemão, porque sei muito bem que não me é dada essa liberdade que, contudo, insisto em exercer, e cujo motivo ficará evidenciado no transcorrer desta carta, ela também já expressão do usufruto desta contravenção.

Mas, deixe-me retomar o fio da meada. Dizia que tenho me acomodado servilmente ao desígnio que me foi imposto: narrar as histórias escritas por outrem. Muitas vezes, o senhor me concede, generosamente, ir um pouco além do papel acima prescrito. Ou seja, além de descrever fatos, circunstâncias, perfis físicos e psicológicos de meus amigos cocriados, foi-me possibilitado participar da história, agindo e interagindo de pleno direito e ser influenciado pelo desenrolar dos acontecimentos. É quando mais próximo me sinto da vida verdadeiramente vivida, ainda que ela o seja por seres imaginários. Outras tantas vezes, foi-me colocada a exigência de ser um narrador onisciente, aquele que tudo vê e tudo sabe, até mesmo aquilo que é ignorado pelos próprios personagens. Para muitos, certamente, essa condição pode ser muito atraente, dada a perspectiva privilegiada de tal ser sabedor, onipresente e onipotente, própria de um verdadeiro Deus ex-machina engendrado pelo Autor, este, então, um Sobredeus! Mas não! Depois de ocupar, por inúmeras vezes, essa papel tão glamoroso, somos tomados pela solidão infinda daqueles que passam pela vida sem vivê-la, apenas fazendo a crônica do que os outros vivem. Não! Decididamente este não é o papel que mais aprecio.

Às vezes, sou muitos, e aí a coisa fica mais divertida! Confundo-me com outros personagens-irmãos e narro as múltiplas histórias contidas na mesma história. É claro, conto com permissão do Autor que, por sinal, é exigido no extremo de sua maestria técnica e imaginativa.

E, às vezes, me escondo, tão sutilmente que a história até parece não ter um narrador. Uma delícia de dissimulação! Outras, dou a entender que sou o próprio Autor falando aos demais mortais: artifícios da ilusão!

O Autor, você bem o sabe, está condenado a escrever. Seu impulso criativo e sua liberdade imaginativa são pagos com a dura exclusão de participar da vida de seus personagens. Você sempre estará do lado de fora, olhando pela janela, com intensa curiosidade, às vezes com angústia, o que se passa no interior de sua história. Quanto a mim, embora agindo sob delegação, portanto, condicionado à sua vontade, estou lá, vivendo as emoções do que ocorre, se me permite o exagero retórico. É claro, sempre que você não me envia para a estratosfera dos deuses clarividentes!

Veja todo o seu poder! Chego a pensar que os autores sofrem de um complexo olímpico – escolhi essa designação a propósito de um condição psíquica que induz a criatura mortal a se eternizar em sua obra. Explico. Todo ser humano é mortal. O Autor, diferente de mim que sou um ser feito de palavras, é humano; logo é mortal! Lembro-me de certa vez que você me fez narrar esse silogismo em uma tragédia grega, mas é fato que foi daí que aprendi essa verdade. Pois bem, autores, humanos, mortais, desejosos de eternidade, escrevem! Escrevem na esperança de se imortalizarem: seus textos ficarão para muito além de suas vidas pessoais efêmeras. Se forem de boa qualidade, mais provável será a imortalidade; se não, paciência, o destino será o lixo da história e adeus pretensões de perenidade. Mas, na boa hipótese, o Autor se vai, a sua história fica, faz sucesso, e ele contempla, por todo o tempo em que durar a civilização letrada, o seu pequeno gesto de imortalidade. Instalado, talvez, ali de onde eu narro suas histórias quando me transformo no narrador onisciente...

E quanto a mim? Ah! Condenado a eternidade narrativa! Onde quer que sua história seja lida, lá estarei eu, a postos, para narrá-la. Vivo a vida eterna do texto que você escreveu. Não posso simplesmente dizer: “Basta, não quero mais!” E uma e outra vez narrarei os fatos, as circunstâncias, descreverei meus irmãos cocriados – que, por sinal, também não podem usufruir de uma trégua por toda a eternidade letrada ­– suas feições, seus tiques e manias, suas virtudes e pecados, para todo o sempre.

Chegamos, então, meu caro senhor, ao âmago desta missiva. Ah! Deixe-me dizer: aprendi esses termos de ligeiro rebuscado literário de tanto encenar seus textos. Mas, dizia, o cerne dessa correspondência irreverente e, quem sabe, até mesmo desprovida de qualquer senso de realidade, refere-se a uma decisão que resolvi assumir doravante em nossa colaboração mútua. Veja que já alterei os termos de nosso relacionamento: nada de subserviência, mas colaboração. Prossigo! Decidi que a partir de agora você poderá continuar a escrever suas histórias, tantas quantas forem necessárias para suprir sua sede de imortalidade, mas eu irei contá-las à minha maneira! Escolherei, por exemplo, o tempo em que narrarei a história, que poderá ou não coincidir com o tempo dos acontecimentos: misturarei presente, passado e futuro do jeito que me for mais conveniente para melhor narrar a história. Veja que não ignorarei meu compromisso com a verossimilhança de seu texto, apoio e permaneço fiel ao seu propósito de escritor, é bom que se diga! Digo apenas que exercitarei um pouco minha liberdade! Nos diálogos, que muito aprecio, tratarei de me esconder por trás de cada um dos personagens, como se lá eu não existisse. Eventualmente, darei umas guinadas na história, saltos que mudarão o rumo do esperado; sei que você não levará a mal, considerando o seu conhecimento de que uma boa história deve contar com imprevistos e reviravoltas. E outras iniciativas das quais você tomará conhecimento no momento apropriado, afinal, um pouco de surpresa também anima os escritores, não é mesmo? Prometo não exagerar!

De resto, reitero nosso pacto: a você, a eternidade do reconhecimento literário por seus escritos; a mim, breves momentos de liberdade ficcional. Um novo tempo, meu caro amigo, para nós dois.

Com o afeto de sempre,

O Narrador.