Percival e Botelho são muito amigos. Uma amizade que já dura pra lá de trinta anos. Estão sempre juntos, embora, nos últimos anos, Percival tenha andado um tanto absorvido pelos cuidados com a saúde, que anda frágil. Botelho é do tipo atlético, assíduo praticante de natação, com disposição para deixar qualquer garoto de vinte anos léguas atrás.
Pois bem, os bons amigos desenvolveram um hábito muito interessante. Toda semana reservam um tempinho para o que chamam de “conversa ao pé do ouvido”; estabelecem um tema, que chamam de “o tema do dia” e conversam sobre ele noite a dentro, num bar perto da casa de Botelho. Varam a madrugada, até que, invariavelmente, Percival cai no sono e Botelho é obrigado a levá-lo para casa. Assim é que os dois amigos permanecem muito animados toda vez que chega o “dia da conversa ao pé do ouvido”, como eles dizem.
Num desses dias, engataram o seguinte diálogo.
- Percival, acho que o tema de hoje será “gentileza”!
- De onde veio esta idéia, Botelho?
- Sabe, hoje eu estava indo ao supermercado e me deparei com uma série de situações que me incomodaram muito. Havia uma senhora tentando atravessar a rua e os motoristas sequer olhavam para ela; um garoto pediu uma informação a um senhor e este sequer virou-se para responder; tentei mudar de faixa inúmeras vezes no trânsito e, numa dessas tentativas, fui sumariamente xingado de “ô, vovô!”; minha filha foi ao banco para resolver uma dúvida financeira e o gerente do banco não deu a mínima para as indagações dela; o filho do meu vizinho colocou um som tão alto que eu mal consegui ficar em casa, temendo que meus tímpanos estourassem.
- Mas Botelho, pelo que você está dizendo, o tema de hoje é “desgentileza”!
- Como queira. É um tema que me aborrece. O que é que está acontecendo, Percival? Onde é que anda aquela gentileza entre as pessoas? Onde é que anda aquela preocupação com o outro? Aquela consideração pela pessoa do outro? O que é que está acontecendo com o mundo, Percival? Será que eu é que estou ficando louco?
- Ô, Botelho, mas vamos pensar, o mundo cresceu, as coisas mudaram, há mais gente disputando um lugar no mundo.
- Mas isto não justifica toda esta falta de consideração, Percival! Dia desses, fui a um hospital público e o que ouvi foi assustador. Havia um senhor sentado na primeira fila de um guichê. Notei que ele estava abatido; parecia cansado. Aproximei-me dele e perguntei o que ele tinha. Sabe o que ele me disse? “Moro só e senti-me triste na noite passada. Aí eu vim pra cá porque sei que aqui receberei alguma atenção das enfermeiras. Sempre que isto acontece, chego aqui cedo, por volta das seis e meia, e fico esperando pra ser atendido. Invento uma dor de cabeça ou uma dor de barriga e garanto uns quarenta minutos de carinho”. Percival, isto me cortou o coração! O que será da humanidade, se para a convivência, um sujeito tem que chegar a este ponto?- É, Botelho, já não basta fazermos a nossa parte, não é? Realmente, o tema que você trouxe é mesmo “gentileza”. Custa ser gentil?
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