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terça-feira, 1 de junho de 2010

Maré alta

Pedro, assim que aprendeu a ler, passou a gostar das palavras. Ou gostou delas primeiro, depois aprendeu a ler?

Ele há muito suspeitava da existência das palavras, mas não estava certo de que elas existiam mesmo. Via o pai lendo jornal, sabia o que era jornal, é claro, apenas não sabia o significado de ler jornal. Via a mãe lendo um livro, sabia o que era um livro, claro está, mas não podia compreender o que era ler um livro. De repente, descobre as palavras.

Maior ainda foi a surpresa quando, ainda no jornal do pai, deparou-se com as tais Palavras Cruzadas, um quadrado maior dividido em pequenos quadradinhos, alguns pintados de preto, números horizontais, números verticais, ao lado uma relação de significados: lindo brinquedo!

Gostou que ali não houvesse uma história contada, apenas palavras, e seus próprios significados. Cada palavra, um assunto. Um mundo novo, infinito. Sem contar as abreviaturas: AC, antes de Cristo; DC, depois de Cristo; SP, São Paulo; bonitas e fáceis de lembrar.

Até que surgiu uma palavra complicada! Uma não, duas palavras complicadas, com uma letra cuja pronúncia parecia variar, sem uma lógica clara. Pedro leu, na coluna das Horizontais, e perguntou ao pai-sabe-tudo:

-- Pai, o que é “flucho” e “reflucho” das águas do mar?

O pai disparou estrondosa gargalhada!: -- É fluxo e refluxo, Pedro! É a maré, o movimento das águas do mar, lembra-se das ondas que vêem e vão na praia?

Mas o pai disse aquelas palavras tão amorosamente, com tanto carinho em seu tom de voz, tão professor, que Pedro teve até vontade de chorar. A risada do pai não foi de mofa, não foi de troça, a situação é que era engraçada. Flucho e reflucho? Uma piada, boa piada, e diante de uma boa piada, há que se rir!

Desde então, ao chegar à praia -- o que ele mais gosta na vida! --, ou abrir o jornal e encontrar as palavras cruzadas, Pedro se lembra da maré. Anos depois, aprendeu ainda que, além de seu significado próprio, as palavras guardam também sua carga de afeto.

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