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domingo, 20 de junho de 2010

A bola de Pedro, a bola de Paulo

(Da série Infância)

Podia haver felicidade maior para dois meninos que um campinho de futebol nos fundos do quintal de casa? Era só pular o muro e pronto: a bola debaixo do braço, as traves de verdade, pouca grama e muita terra batida, nenhuma marcação nas laterais, nada de grande ou pequena área, a marca do pênalti havia, mas era sempre um campinho de futebol.

Havia um senão -- há sempre um senão! Bem ao lado do campo, em toda a sua extensão, separado apenas por um bambual que segurava o barranco, corria um ribeirão de águas turvas, barrentas, fétidas, receptáculo de esgotos e latrinas da cidade de interior com saneamento precário. Pois o pacato curso d’água, de nome Ribeirão dos Alves, era afluente -- e ainda é, pois não se muda o curso das águas por qualquer dá cá esta palha -- do caudaloso e imponente Paraíba do Sul, que empresta seu nome a toda uma região de importância histórica e econômica, o Vale do Paraíba.

Estes detalhes pluviográficos justificam-se: em tempo de chuvaradas e enchentes, na estação das cheias, enchendo o Paraíba, transbordavam também seus afluentes, que se tornavam perigosos, nada parecidos com os insignificantes ribeirões, então promovidos à categoria de rios, mas que ainda corriam espremidos pelas margens de sempre, margens de riacho, estabelecidas pela imprudência dos homens ao construírem suas moradas, a eterna luta entre continente e conteúdo.

Mas vamos à nossa história. Era Natal: Pedro e Paulo ganharam uma bola de couro, bola de verdade, toda branca, com aquele furinho por onde se enfiava o bico-de-encher-bola conectado à bomba-de-encher-pneu-de-bicicleta. Para enfiar o bico, os meninos usavam cuspe: lubrificante universal, visto está! A bola cheia, os dois irmãos foram para o campo, numa tarde chuvosa, o céu carregado e cinzento -- céu azul para Pedro e Paulo --, o Ribeirão dos Alves enfezado, comedor de barrancos, mais barrento do que nunca.

Como eram apenas os dois a desfrutarem daquele momento especialíssimo, a brincadeira era simples: chutes a gol: um chutava, o outro pegava, se pudesse; 10 chutes; depois trocavam de posição; ganhava quem marcasse mais. Até que, numa rebatida meio desajeitada, a bola tomou o rumo da lateral proibida, passou incólume pela estreita falha no bambual, rolou barranco abaixo, caiu no ribeirão, para desespero dos meninos. Tudo, menos perder aquela bola! Foi o que pensaram, nem pensaram, brotou na cabeça de cada um, veio das tripas, instinto, vida ou morte.

Ambos correram para a margem, estupefatos, a bola já na correnteza. Pedro não titubeou: entrou na água suja, enfrentou a correnteza, precisava salvar a bola. Paulo ficou na margem, torcendo, Pedro precisava daquele apoio, o irmão sempre junto, torcendo.

Juntou gente na ponte sobre o ribeirão, aquele menino tão pequeno enfrentando aquela enchente, atrás de uma bola; podia se afogar! Alguém conhecido da família foi chamar a mãe -- a casa ficava ao lado da ponte, do ribeirão e do campinho --, que chegou esbaforida. A mãe gritava, histérica, Já pra dentro já pra dentro os dois de castigo.

E os dois foram para o quarto, de castigo. Conversavam, falavam baixo, para não chamar a atenção da mãe, riam baixinho, de tanta felicidade, a bola fora salva, mais um pouco e chegava ao Paraíba, lá onde o mundo acaba. O castigo -- que castigo?

Pena que a mãe não pôde saborear aquele momento: a coragem dos filhos, a importância de uma bola de couro.

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