Buceta ou boceta? A dúvida se implantou na mente de Andrezinho aos... quantos anos teria então, talvez oito ou nove?
Antes do acontecido, o menino já ouvira a palavra proibida, geralmente dita pelos pequenos comparsas, seus amiguinhos de rua, de campinho, de punheta e troca-troca. Escreviam onde podiam a palavra, esculpida com o canivete, na porta dos banheiros, nas carteiras da escola, nos bancos do jardim que ficava em frente à escola paroquial, nos muros da vizinhança: BUCETA.
Na imaginação precoce do garoto, buceta era o nome que se dava ao que seria o equivalente a pinto, com a diferença de que este ele conhecia muito bem, digamos que em “primeira mão”, se é que o leitor me entende! A outra era um completo mistério, somente conhecida em sua versão infantil quando Anrdezinho via a irmã menor que, ainda sem pudores, andava pelada pela casa. Mas a dela parecia mais uma boquinha de sapo! Como seriam as bucetas maduras? A questão insólita atormentava a mente do garoto.
Andrezinho tinha uma vizinha adolescente, nos seus 15 ou 16 anos, pela qual era perdidamente apaixonado. Chamava-se Eleonora e era filha de um comerciante judeu, o único que Andrezinho já conhecera; a maior parte dos vizinhos era descendente de italianos, espanhóis e portugueses. Talvez por isso mesmo, Eleonora, com sua pele clara e feições delicadas faziam o menino sonhar. E não poucas vezes, ele ficava a devanear a respeito de como seria a buceta da vizinha. Os comparsas diziam que a adolescente tinha pelos na buceta, “pentelhos” como diziam, intensificando o mistério e a curiosidade do pequeno André que passava horas imaginando o que faria no dia em que se deparasse com uma.
O ocorrido se deu no início do terceiro ano do curso primário – era assim que naquela época se chamava o curso fundamental – quando Andrezinho recebeu o livro de português que seria usado naquela série, e português era a matéria que ele mais apreciava, haja vista o seu interesse pelas palavras. Como fazia em todo início de ano, folheava ansiosamente as páginas do livro, examinando-o e antecipando as leituras que faria ao longo do período. Cada lição era iniciada por um excerto de texto literário, acompanhado por um vocabulário que apresentava as palavras novas e mais uma parte gramatical, um tanto menos interessante para Andrezinho pois que versava sobre uso de ponto, vírgula, acentos e coisas que tais. Ele gostava mesmo era das histórias.
Pois bem, aconteceu. Lá pelas páginas trinta e poucas, Andrezinho se deparou com um texto intitulado “A Boceta de Pandora”. Boceta ou buceta?, retornou a dúvida à mente do pequeno André. E num livro de escola, não num “catecismo”! – este era o nome que os garotos davam aos livrinhos de sacanagem que exibiam cenas sexuais desenhadas sem qualquer esmero artístico e que passavam de mão em mão, causando alvoroço na molecada.
Devorou o texto e em seguida, como já era de hábito, escreveu um pequeno resumo do que havia entendido:
Nos tempos antigos, lá na Grécia, existia um deus muito foderoso chamado Zeus. O cara ficou muito bravo porque um de seus filhos, sujeito chamado Prometeu, roubou um tanto do fogo do Pai e deu de presente aos homens que a partir daí puderam fazer muitas coisas. O manda-chuva pra ferrar de vez com os humanos preparou uma armadilha: pediu a um cupincha, um tal de Hefesto, que fizesse uma mulher muito bonita, daquelas de fechar o comércio – como meu pai costuma dizer – tipo assim uma Brigite Bardot (vi uma fotografia dela de maiô em uma revista).
Esse mulheraço – chamavam ela de Pandora porque tinha todos os dons e, certamente até pelos na buceta – era irresistivel para qualquer mortal. Zeus, o cara, mandou Pandora como presente para Epimeteu, irmão de Prometeu, nosso herói. Epimeteu, que era um cara da pá virada, babou quando viu a moça, apesar do irmão ter lhe advertido para não aceitar presentes de Zeus. Mas fazer o quê diante de tanta beleza! (Andrezinho fez uma pausa para lembrar-se da vizinha).
Pandora tinha um vaso – uns dizem que era uma pequena bolsa, daí boceta – no qual Zeus tinha colocado todos os males do mundo. Certo dia, Pandora, certamente a mando do Chefe, abriu o vaso e pronto! A esbórnia aconteceu: miséria e doenças pra todo canto. Pandora fechou o vaso a tempo de impedir que a esperança, que ficou presa no fundo da boceta, escapasse também. Deve estar lá até hoje.”
Andrezinho concluiu suas anotações e estava atônito. Dias e noites meditou aobre o sentido dessa história. Pensou na atitude de Zeus – comparou com o pai e concluiu que o deus era bem pior – que não queria que os homens conhecessem o fogo, pensou na coragem de Prometeu, esse sim um grande herói, no confuso Epimeteu que entrou na conversa de Pandora, e na própria Pandora, com um misto de desejo e pavor. Mulher misteriosa, igualmente “foderosa”. E ficou pensando ainda sobre a relação das duas palavras que agora conhecia: buceta, presente em sua vida mundana, e boceta, oriunda de seus estudos eruditos. Pressentiu nexos que só viriam a se elucidar décadas depois quando viesse a abraçar o ofício de psicanalista. Sentiu-se menos ignorante e com ávida expectativa pela aula de redação com Dona Cora.
Na sala de aula, professora Cora, que sempre valorizou a criatividade dos alunos e procurava estimulá-la sempre que possível, pede aos alunos que destaquem uma folha de seus cadernos e registrem o primeiro pensamento de uma histótia que gostariam de contar. Andrezinho, entusiasmado com suas recentes descobertas e com certo ar de presunção por ter se adiantado nas leituras do livro texto, escreve: “A Boceta de Eleonora”. Não se apercebe do lapso que somente virá a compreender anos depois, homem já crescido. Não temos noticia sobre a reação da professora Cora às ideias criativas de Andrezinho.
Roque Tadeu Gui
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