Pavaroti e Araci eram galináceos índios e, portanto, selvagens. Podia-se dizer que viviam suas vidas moderadas de maneira feliz, todo dia acordavam às 4h30 e a partir de então seguiam religiosamente a rotina, até o cair da tarde às 17h30, quando se empoleiravam. Pavaroti cumpria com sua função de marido satisfatoriamente, pelo menos três vezes ao dia. Passavam o dia juntos: onde ia Pavaroti, Araci seguia; ele abria rastros no chão para ela ciscar, ela catava os piolhos dele, limpava suas penas com muito esmero. Sim, podia-se dizer que eram felizes. E viveram assim, repetidamente, da mesma forma todos os dias, por algum tempo. Até que tudo mudou.
Era um dia de muito sol, o tempo estava seco e toda vez que Pavaroti abria um rastro no chão para Araci ciscar subia uma nuvem de poeira que encobria parcialmente a visão dos limites do galinheiro, este bastante espaçoso para o casal e, de tempos em tempos, a prole, os pintinhos amarelinhos. O inusitado ocorreu neste dia em particular, o dia em que tudo mudou. Abriu-se o rastro, subiu a poeira, mas quando a nuvem baixou, a grande surpresa, que quase matou do coração tanto Araci quanto Pavaroti, cada um por motivo inverso (como se sabe, o coração dos galos e galinhas são bem pequenos, o que os torna suscetíveis à morte com pequenas mudanças, de qualquer gênero e grau).
A nuvem de poeira uma vez dissipada revelou duas galinhas caipiras, uma branca bastante carnuda chamada Bete, e outra bege pintadinha, magra porém jeitosa, novinha, que por isso mesmo ia pela alcunha de Sinhá Moça. As duas ficaram estáticas por cerca de três minutos, de certo tentando imaginar qual seria o seu destino. Pavaroti e Araci também demoraram três minutos, não mais não menos, para determinar o futuro das novatas. Para Araci, inimigas; para Pavaroti, concubinas.
O estresse reinou lado a lado com a satisfação plena durante sete dias. Raivosa, selvagem, a índia Araci arrancava penas e botava as frangas pra correr, enquanto Pavaroti deleitava-se com um novo gozo. O ciúme de Araci dificultava as investidas de Pavaroti, o que o deixava exausto no final do dia e, por isso, incapaz de realizar plenamente suas obrigações maritais para com Araci. Isto só contribuía para deixar Araci ainda mais frustrada, o que por sua vez cansava ainda mais o galo e assim por diante.
No oitavo dia, tudo mudou de novo. O tempo estava mais seco e a nuvem de poeira provocada pelo rastro do galo estendia-se mais e mais alta. Nesta altura a poeira nem assentava mais, quando baixava um pouco o galo já estava a levantar nova poeira, até porque agora tinha três vezes mais galinhas a cuidar. De modo que se via tudo bastante turvo, sem definição, o que ocasionalmente foi um alívio para Araci, quando era confundida por uma das novatas e recebia a divina graça do gozo do marido. Até que suas chances de ser confundida diminuíram consideravelmente.
Quando a poeira deu breve trégua, as novatas haviam se multiplicado num passe de mágica e duas viraram quatro – havia mais duas novatas, mais duas concorrentes no galinheiro. Araci cocoricou de raiva, não podia acreditar em tamanha desgraça. No exato mesmo momento, Pavaroti quase desmaiou de deleite, suas chances também haviam se multiplicado; desgraça de uns, alegria de outros. Glória, loira e razoavelmente carnuda, e Áurea, de pelagem exótica, que se orgulhava de ter vencido um concurso de top chicken, agora habitavam o mesmo galinheiro, não mais tão espaçoso, mas satisfatório o bastante para as novas novatas, em especial Glória, que tomou um gosto particular pelo amante.
Sete dias se passaram e todos acreditavam que era apenas uma questão de tempo até que Araci cedesse. Afinal, afastar não uma mas quatro galinhas, no pior sentido da palavra, era tarefa árdua e Araci começava a mostrar sinais de emagrecimento e exaustão. Até que tudo mudou, mais uma vez, acreditem se quiser. Sim! A visão empoeirada mais uma vez abençoou Pavaroti, os deuses favoreciam-no, com uma nova diferença: após três contagens e cinco piscadelas Araci confirmou que agora havia não duas, mas três novas impostoras, três novíssimas novas novatas – Antonia, Pipa e Lolita. Foi obrigada a refletir: a mudança era agora sua rotina, para o bem ou para o mal.
Então fez o que uma galinha pode fazer, roubou os ovos das sete concorrentes e botou a chocá-los, dezesseis ovos ao todo, dos quais nasceram sete pintinhos amarelinhos que naturalmente chamaram Araci de mãe. Os pintinhos seguiam a mãe em fila indiana onde quer que ela fosse. Formavam uma barreira ao redor de Pavaroti, dificultando sua dança do amor com as novatas. Este relutou por um tempo com os pintinhos, mas na medida em que estes cresciam, crescia também a barreira e a dificuldade em alcançar as frangas, até que o inusitado ocorreu, novamente: Pavaroti começou a mostrar paternal interesse pelos infantos. Gradualmente, tornou-se um bom pai, atencioso e dedicado. E sua nova proximidade com uma, uma galinha apenas, Araci, fez crescer nele um novo interesse, mais forte do que nunca, renovado. Voltou a visitar seu ninho...
Então, uma a uma as novatas sumiram, em um passe de mágica. Araci nunca descobriu como elas apareceram e certamente não sentia necessidade em saber como e por que sumiram tão misteriosamente.
Araci vingara-se.
Paula Vianna
Ótimo Paula, até parece que essa Araci saiu do Xingu! Gostei muito ,bem escrito e agora os animais que imperam nossos escritos, não? Sergio Pripas
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